Ano 08 nº 076/2020 – Marcos Bagno fala ao Junipampa #ΤβΤ

Entrevista realizada com o sociolinguista Marcos Bagno em 2012 inaugura o #TBT do Junipampa. Foi uma produção importante do Junipampa.net, considerada pelo próprio Bagno como uma das melhores entrevistas já feitas com ele até a época. Então, aproveitem e curtam esta produção incrível da equipe do LAB-2012. Boa leitura!

image1Imagem da Timeline de Marcos Bagno no Facebook

                                                #ΤβΤ   JUNIPAMPA 2012Entrevista exclusiva

Marcos Bagno,  é professor do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília, doutor em filologia e língua portuguesa pela Universidade de São Paulo – USP, tradutor e escritor com diversos prêmios e mais de 30 títulos publicados, entre literatura e obras técnico-didáticas. Atua mais especificamente na área de sociolinguística e literatura infanto-juvenil, bem como de questões pedagógicas sobre o ensino de português no Brasil.

 

Bagno esteve presente na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)/Campus Bagé, no dia 3 de dezembro de 2012, para conceder uma entrevista ao Jornal Universitário do Pampa (JUNIPAMPA), respondendo a questionamentos relacionados, entre outros temas, à polêmica do ENEM 2012, em torno da prova da área de Linguagem, que abordou questões relacionadas à variação linguística e ao preconceito linguístico. Também citou sua participação na avaliação de livros didáticos do MEC e antecipou questões fundamentais sobre o seu mais novo livro: ‘“Gramática pedagógica do português brasileiro’’, que seria lançado no mesmo dia, no período da noite, após a palestra: ‘’O que é e para que serve uma gramática?’’, no campus Bagé.

 

Entre as principais obras de Bagno, encontram-se: A Língua de Eulália: novela sociolinguística (1997); Pesquisa na escola: o que é, como se faz (1998); Preconceito linguístico: o que é, como se faz (1999); Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia & exclusão social (2000); Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa (2001); Gramática, pra que te quero? Os conhecimentos linguísticos nos livros didáticos de português (2011); Festa no meu jardim (infantil) (2011); Gramática pedagógica do português brasileiro (2011), entre outras.

 

Confira abaixo a entrevista concedida por Bagno ao JUNIPAMPA!

image3                                                      Marcos Bagno e a Equipe do LAB-2012

TRANSCRIÇÃO DE COLETIVA DO JUNIPAMPA COM MARCOS BAGNO

03/12/2012

Greice Kelly Jorge: O novo livro que o senhor irá lançar hoje à noite aqui na UNIPAMPA [Gramática Pedagógica do Português Brasileiro] servirá como “base” para os professores em formação. Em muitas Universidades, inclusive aqui, a formação dos professores está baseada nesta nova pedagogia de conscientização e reflexão sobre as variedades linguísticas. Portanto, os professores oriundos dessas universidades já “saem” preparados para esses desafios. Porém, o grande “problema” é a formação dos professores do Ensino Médio e de alguns docentes de nível superior, já formados, que ainda estão com os olhos fechados para essa nova pedagogia, não conseguem se desprender da Gramática Tradicional. O que os linguistas e sociolinguistas podem fazer para isso mudar, para que esses profissionais possam rever suas ideias e abandonar essa postura errônea e ultrapassada do ensino de língua portuguesa, baseada na gramática prescritiva? O que ainda pode ser feito?

 

Marcos Bagno: Eu acho que o que os linguistas podem fazer é o que a gente já têm feito, que é precisamente fornecer os resultados das suas pesquisas de maneira sistematizada para embasar o ensino geral e principalmente as diretrizes oficiais de ensino. Nós temos a nosso favor toda uma legislação, toda uma série de instrumentos do próprio Ministério da Educação que promove um ensino diferente dessa coisa que era até pouco tempo atrás. Essa questão de haver pessoas ainda muito resistentes é bastante normal quando uma coisa nova aparece. Esperar que as pessoas, como eu digo brincando, se convertam e aceitem Jesus no coração assim de uma hora para outra é muito difícil. Isso também se deve a questões pessoais. Às vezes a pessoa tem uma formação mais conservadora, ou é politicamente mais conservadora e reacionária, e ainda acredita nesses postulados de que se deve ensinar o português correto e todo esse conjunto de ideias que se baseia no princípio da correção. O século XX foi um período muito importante, porque foi a grande contestação de todas as ideias tradicionais, do que é certo, do que é errado. Até a metade do século XX, era certo a mulher casar virgem, era certo a mulher ficar em casa, não votar… Essas coisas todas foram sendo desconstruídas para a democratização da sociedade. Por alguma razão que merece ser estudada, a língua ainda é o último reduto dessas ideias mais conservadoras. A pessoa já sabe hoje em dia que não pega bem ser racista, ser sexista ou falar mal de determinado grupo de pessoas ou camadas sociais, mas exerce esse poder de discriminação por meio da linguagem. Não posso discriminar você, porque você é negra, homossexual ou é de uma região que eu não gosto, então eu tenho um bom motivo para discriminar: é a sua linguagem. A linguagem sobrou como a última desculpa que a gente tem ainda para discriminar as pessoas. Isso é muito interessante do ponto de vista antropológico e sociológico. Por quê? É curioso que às vezes pessoas de posicionamento político e cultural mais avançado, mais progressista, em todas as áreas da sociedade, quando vão falar de língua caem no discurso tradicionalista. Eu digo que essas ideias, essa ideologia linguística conservadora, pega todo o espectro político que vai da extrema direita à extrema esquerda. É uma coisa que unifica as pessoas. Quando o deputado Aldo Rebelo lançou aquele projeto para proibir os estrangeirismos no Brasil, ele foi aplaudido por todo mundo; pelas pessoas mais radicais da esquerda e pelas pessoas mais radicais da direita. É curioso como a questão da língua ainda unifica o ideário político e as pessoas progressistas ainda não se deram conta de que a língua também é um instrumento de dominação política, de opressão e de que ela deve ser estudada nessa ótica. A ideia de que é preciso todo mundo falar certo, de que há uma maneira certa de falar não vigora só no Brasil, mas em vários países, praticamente no mundo todo, porque a língua sempre foi usada como um instrumento político sério de repressão, de controle da vida social. Então, respondendo a sua pergunta, os linguistas já têm dado uma colaboração no sentido de fazer pesquisas, de divulgá-las e, com base nelas, se possível, criar novos instrumentos políticos de educação. Mas isso chega muito devagar. Eu fiz, por exemplo, uma pesquisa muito grande com livros didáticos e, infelizmente, 75% do livros que eu analisei – eram todos aprovados pelo MEC – ainda traziam a parte da gramática muito conservadora, muito prescritivista. Eram trabalhos muito legais, às vezes, de leitura, de produção de texto, de oralidade, mas na hora de tratar a gramática, é como se tratar do funcionamento da língua fosse uma coisa que não tivesse nada a ver com leitura e produção de texto. Os alunos tinham lido um texto interessante, no entanto, não se aproveita esse texto para fazer uma reflexão sobre o funcionamento da língua – “por que o autor usou tal forma e não aquela?’; “O que essa palavra está criando em termos de sentido?”. É como se houvesse uma esquizofrenia dentro dos livros; eles tinham uma parte muito legal e outra ruim, e, como eu disse, assim eram 75% dos livros. Então, a mudança é uma coisa que demora, as ideias novas demoram a se firmar.

 

Lilia Lima: Em relação à polêmica do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) 2012 em torno da prova da área da linguagem. A mídia acusou o ENEM de enfatizar o “uso polêmico’’ de termos coloquiais, chegando a afirmar que estava em curso uma política de “emburrecimento’’ dos estudantes. Na sua opinião, o que a mídia estaria fazendo não seria mais uma ânsia de catar erros no Governo?  Isso não lhe parece mais uma fixação do que uma real preocupação com o ensino da língua no país? Qual o seu posicionamento em relação a isso, visto que, inclusive, o senhor foi mencionado em uma das questões do ENEM 2012 e também foi alvo de críticas da mídia.

 

Marcos Bagno: Eu acho que sim, que a crítica da mídia ao ENEM de uma maneira geral é essencialmente política, não tem nada a ver com a educação, com a propagação do conhecimento, nada disso. Aliás, a grande mídia brasileira vem tentando combater o ENEM desde que ele foi criado. A razão é muito simples: o vestibular como instituição fez surgir ao redor dele o império de cursinhos, de escolas particulares que querem colocar os seus alunos na universidade, estes que eu chamo de vestibudólares. Nós temos no Brasil empresas riquíssimas, multimilionárias… A mais famosa é o Objetivo que agora virou universidade, considerada a maior universidade do país, a Unip. Essas pessoas, esses empresários, não querem de forma nenhuma, é claro, perder esse seu ganha-pão fantástico que é a bendita preparação para o vestibular. Então, como a nossa mídia é essencialmente vinculada aos setores mais conservadores da nossa sociedade, qualquer pretexto que ela encontre para não defender explicitamente esse veneno, essa indústria de vestibular, ela vai fazer. Algum tempo atrás houve aquele vazamento das provas do ENEM… Num universo de cinco milhões de alunos, 600 alunos lá no Ceará tiveram acesso a algumas questões da prova e olha o estardalhaço que se fez por causa disso. Se a gente pegar na ponta do lápis e calcular, 600 dentro de cinco milhões é 0,000000 não sei o quê por cento. Aí vem o juiz dizer que quer anular todo o exame nacional por causa disso… Desde que o ENEM foi criado ele vem sendo combatido, e é por causa disso, porque ele realmente vai ferir os interesses econômicos desses grandes grupos aí, que têm o seu lobby no congresso, têm o seu lobby na grande mídia. E no caso do ENEM 2012, houve uma questão em que apareceu um texto meu e eu não gostei da maneira como foi abordada. Achei que o texto poderia ter sido aproveitado melhor e fiz esse comentário no Facebook. É claro que os grupos da imprensa começaram a me procurar para ver se eu falava mal do ENEM. Mas eles deram com os burros n’água, porque eu falei foi mal deles mesmos: “não, imagina, estou totalmente a favor do ENEM”. Um jornalista perguntou se não era absurdo fazer oito perguntas iguais sobre a mesma coisa, e eu falei: “elas não são iguais, elas são diferentes, elas abordam o universo da variação linguística, mas com perspectivas diferentes, isso faz parte da educação linguística, isso faz parte das diretrizes de ensino do MEC desde há muito tempo, então eu falar mal do ENEM? Nem pensar! A questão é realmente essa, é fundamentalmente política, é a defesa dos interesses econômicos das empresas envolvidas no pré-vestibular.

 

Marilaine Castilhos: Em 2004, o senhor foi coordenador-adjunto da avaliação dos livros didáticos de português para o ensino médio e atuou em mais dois processos de avaliação de material didático para o MEC: o PNLD-Dicionários (2005) e o PNLD (2008) de 5ª a 8ª séries. Esse trabalho teria despertado alguma influência sobre a sua decisão de posteriormente publicar, em 2007, o livro Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística, já que nesse livro o senhor analisa os problemas existentes nas abordagens que livros didáticos e materiais de formação docente vêm dando à variação linguística? 

 

Marcos Bagno: O livro que realmente é resultado dessa experiência não é Nada na língua é por acaso. Ah, também é! É porque eu tenho um livro que se chama Não é errado falar assim e tem Nada na língua é por acaso e eu vivo confundindo os dois. Mas posteriormente eu escrevi um livro chamado Gramática, pra que te quero?, que é realmente todo dedicado ao exame de livros didáticos. Nada na língua é por acaso é uma tentativa de levar os fundamentos teóricos da variação linguística para um contexto mais amplo, para uma pedagogia da língua materna, ao passo que Gramática pra que te quero? é o resultado explícito do processo de avaliação de livros didáticos. Então, justamente eu peguei as 24 coleções que tinham sido aprovadas no processo de 2008, cada uma com quatro livros, e fiz a análise completa de todos esses livros com foco na abordagem da variação e dos pontos gramaticais. Foi aí que eu cheguei a esse número de 75% de livros que continuam privilegiando um tratamento o mais tradicional possível da gramática através de frases inventadas para serem classificadas etc. Nesse livro, Gramática, pra que te quero é que faço essa abordagem. Ali eu critico com força os autores de livros didáticos, porque é um caso sério. Vejam, dois terços dos autores dos livros didáticos que eu analisei se formaram na USP. Eu acho que isso já denuncia bastante coisa… Aquele peso tradicionalista… Alguns dos melhores livros foram feitos no Paraná. Aliás, quase todos são de São Paulo, o Paraná vem se destacando, Minas Gerais tem uma coisinha, e acabou. As editoras são quase todas de São Paulo. O Paraná vem se destacando. Minas tem uma coisinha, e o resto do Brasil todo não tem nada. Às vezes, mesmo as pessoas formadas em outros lugares vão publicar em São Paulo. Isso cria problemas muito sérios nos livros didáticos, porque a pessoa está escrevendo em São Paulo para um aluno que vai ler esse livro no Amapá ou no Acre. Aí está lá assim: “Professor, sugira aos seus alunos uma visita ao zoológico”. Quantas cidades brasileiras têm zoológico? Aquele pensamento centrado no Sudeste.

 

Mariane Rocha: Mas isso não vai muito do professor adaptar para o seu contexto?

 

Marcos Bagno: O professor não tem tempo. Suas condições de trabalho são precárias. O livro didático já é um grande auxiliar por isso, mas o interessante seria que houvesse produção mais descentralizada, com sugestões que viessem de outros lugares, explorasse as questões linguísticas de cada região. Aqui, por exemplo, vocês têm a possibilidade da fronteira, a questão do bilinguismo, que livro didático aborda isso? O ideal seria que o livro que fosse adotado aqui nessa região tratasse disso justamente para que as pessoas se dessem conta dessa realidade e se interessassem pelo assunto. Ou no interior aqui do Rio Grande do Sul onde se fala italiano, alemão… Seria interessante que isso fosse abordado nos livros didáticos de alguma maneira. Se o livro adotado aqui nessa região falasse sobre isso, as pessoas se acordariam para essa realidade, mas fica a ilusão de que no Brasil todos são monolíngues no português, que todo mundo fala igualzinho aos paulistas, ou paulistanos, para ser mais exato. Perdem-se as especificidades locais. É claro que o ensino tem que dar uma abordagem mais ampla dessa cultura geral brasileira, literatura, cinema, mas valeria a pena de alguma maneira focalizar também os universos particulares, mas isso não acontece. É curioso porque, por exemplo, algumas poucas editoras conseguem aprovar e vender cinco, seis coleções, porque elas produzem muitas coleções diferentes.. Uma mesma editora produz cinco ou seis coleções de Língua Portuguesa do 3º ao 5º ano, por exemplo. Cada coleção com um perfil diferente: uma bem conservadora, uma que se adapta mais a escolas religiosas particulares, outra que tenta responder ao MEC, então para poder se sair bem na avaliação do PNLD… Mas vocês sabem que o MEC do Brasil é o maior comprador de livros do mundo, é uma coisa assim de não sei quantos milhões de livros comprados. Ter uma coleção aprovada é uma coisa fantástica,  porque você vai vender milhares de exemplares, vai ganhar 4 ou 5 milhões de reais, 50 milhões de reais se você vender 4 ou 5 coleções. Eu conheci autores de livros didáticos que dizem que gostariam até de inovar em algumas coisas, mas as editoras não deixam porque elas sabem que existe um professorado mais conservador que não se adapta a algumas mudanças, então fica difícil. Eu tenho uma grande amiga que é uma linguista muito boa que dá aula na PUC em São Paulo. Ela tem uma coleção de livro didáticos que não está sendo reeditada porque a editora não quer mais, e é a única de todas as autoras que eu analisei que trabalha com a noção de sintagma. Sabendo o que é um sintagma a gente resolve 100 dúvidas de português, por exemplo, a questão da concordância, a questão da pontuação… A questão do sintagma é fundamental para a sintaxe. Aliás, sintagma e sintaxe são palavras da mesma raiz. Essa autora trabalha com isso, mas a sua coleção logo foi abandonada, porque os professores não conseguiam trabalhar com a noção de sintagma. Apesar de estar superbem explicado no livro, com exemplos e tal, a editora disse para ela: “olha, se você quiser que a sua coleção continue com a gente, vai ter que tirar a noção de sintagma”.

 

Mariane Rocha: Na Conferência de abertura do VII EBREL – Encontro Brasiliense de Estudantes de Letras, intitulada: “Curso de Letras? Pra quê?”, o senhor afirma que a situação dos nossos cursos de Letras é catastrófica. Fala do despreparo dos alunos que ingressam, enfatizando que muitas vezes eles não sabem as estruturas básicas de um texto. Pensando nessa carência, uma das oficinas do LAB – a Oficina de Leitura e Escrita Digital – oferece aos alunos da Universidade aulas de leitura e produção textual, com foco nos gêneros textuais, no contexto digital. Tendo em vista a necessidade de reestruturação curricular do curso de Letras, da qual o senhor fala nesse texto, o senhor considera esse tipo de ação relevante, uma dessas formas de mudança, ou pensa que é apenas uma forma de “tapar o sol com a peneira” ou remendar. O senhor acha que é por aí?

 

Marcos Bagno: A iniciativa é bastante válida. Acho uma beleza que vocês tenham proposto isso e estejam levando adiante, mas a minha reivindicação é que isso seja uma coisa realmente institucionalizada, que as universidades tenham cursos de leitura e escrita institucionalizados, para que os alunos ingressantes possam de fato ingressar na vida acadêmica. Eu vejo isso o tempo todo na universidade em que eu trabalho. Os alunos entram e logo no primeiro semestre a gente tem quer dar introdução à linguística, trabalhar com conceitos abstratos, com a filosofia da linguagem, que são coisas muito novas. Se nós tivéssemos um ensino médio bom, como existe em outros países, que preparam as pessoas para ler e escrever, para compreender textos mais profundos e tal, então de fato as pessoas já entrariam na universidade para se meter a  ler Saussure, Chomsky etc. No nosso caso, não temos. A educação brasileira é, infelizmente, uma das piores do mundo. A nossa educação básica não prepara o estudante para a vida acadêmica. E tem também essa questão de todo mundo querer fazer universidade, essa ânsia de fazer, o famoso “fazer faculdade”. Acho também que não é o caso. Considero que a universidade é um lugar para ir quem realmente quer se dedicar à pesquisa, quem quer trabalhar com algum tipo de reflexão, de reflexão teórica etc. Não é lugar para receber um diploma, para receber uma profissão. Em muitos países existem cursos técnicos formadores de profissionais. É todo um complexo sério que a gente tem na nossa própria história educacional. Quanto mais a gente puder colocar as pessoas para ler e escrever a partir dos primeiros anos de educação, melhor. Não ficar perdendo tempo com dígrafo, essas bobagens, mas tratar de ler e escrever… É claro que a reestruturação do curso de Letras para mim é fundamental, a começar pelo nome. Acho esse nome ‘Letras’ apavorante, porque é uma coisa muito séria. As Belas Letras… Onde vai ficar o estudo da oralidade em um curso chamado ‘Letras’ e que realmente nasceu para o estudo da literatura clássica? O estudo da língua vinha como auxiliar daquilo que era considerado mais importante que era o estudo da grande literatura. A ideia do curso de Letras é anterior ao surgimento da Linguística moderna, da ciência linguística, das pesquisas voltadas para a língua, então a gente querer continuar… Querer fazer ciência da linguagem em um curso chamado ‘Letras’ parece uma coisa meio fora do que deveria ser. Deveria se chamar uma coisa mais ampla, como ciências da linguagem, até porque essa noção de ‘Letras’ remete à tradição normativa, certo ou errado, à elegância, à retórica tradicional, tudo que já está muito ultrapassado.

 

Lília Lima: Sobre a polêmica do livro didático aprovado pelo MEC. O livro em questão é o Por uma vida melhor, que foi crucificado por boa parte da mídia nacional. Essa reação midiática revelou o quanto o Brasil precisa evoluir em termos de qualidade de educação e o quanto o jornalismo brasileiro precisa progredir em termos de qualidade e inteligência, pois a grande maioria dos jornalistas nem ao menos leu o livro e já saiu condenando-o. Na sua opinião, professor, até onde esses “equívocos’’ cometidos pela mídia podem afetar a compreensão das pessoas em relação à verdadeira intenção do livro? Até onde interferem na reflexão sobre as variedades linguísticas presentes no dia a dia da sociedade?

 

Marcos Bagno: Quando surgiu essa história, em maio de 2011, eu não acreditava. Não é possível que esses jornalistas sejam tão ignorantes assim! Eu comecei a ficar desconfiado. Exatamente como na resposta sobre as questões que vazaram do ENEM, imaginei que isso tinha a ver com uma questão política, pois desde que o governo Lula assumiu o poder existe uma campanha profunda das nossas grandes empresas da mídia contra qualquer coisa que o governo faça. Se tem que mentir e deturpar, eles fazem isso com a maior naturalidade. O que aconteceu na época, analisando agora, o fato mais atraente para esses setores conservadores era atacar o governo e principalmente o MEC, que naquele momento era chefiado pelo Fernando Haddad, que estava sendo lançado como candidato a prefeito de São Paulo. Acho que toda essa campanha contra o MEC, sempre culpando o MEC, o MEC elabora errado, isso tudo, para mim esse era o foco. Eu escrevi, eu falei centenas de vezes nessa época: os livros didáticos já trazem a abordagem da variação linguística há mais de 15 anos. Já na primeira versão dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que não foi coisa do governo Lula, foi uma coisa do governo Fernando Henrique, já estava lá que o ensino precisa abordar a variação linguística, que o Brasil não é um país monolíngue, que a língua é heterogênea, que não se deve ter preconceito linguístico… É a partir desse momento da publicação dos parâmetros que se intensificou a produção de livros didáticos que abordam a questão da variação linguística. Então, não é novidade nenhuma. Mas eu pensei, por que de repente, em 2011, cai feito um meteoro na cabeça de um jornalista um livro que fala sobre variação linguística? O que está acontecendo? O interesse deles era ter um pretexto para criticar o governo sobre qualquer coisa, qualquer aspecto. Eu percebi isso nas muitas entrevistas que eu dei para jornal, rádio, televisão, até a partir de um momento que eu falei assim: “Fechei, não falo mais sobre esse tema. Chega.” Eu vi que era essa questão nessas entrevistas. Por mais que eu falasse, “olhe, isso já está nos parâmetros há mais de 15 anos, a variação linguística faz parte do currículo”, isso passava por eles como se não fosse nada assim. Perguntavam somente: “Eu tenho que ensinar a falar certo? Eu tenho que ensinar a falar errado?” É de novo uma questão muito claramente política e ideológica, arrumar um pretexto para poder falar mal do governo. É aquilo que eu falei sobre o ENEM, são cinco milhões de estudantes e 600 alunos tiveram acesso à prova. Foi o suficiente para fazerem escândalo e dizer que o ENEM não presta. E o mais curioso é que o livro em questão, Por uma vida melhor, traz uma abordagem da variação linguística que eu considero até conservadora. Primeiro que ele fala assim: “escrever é diferente de falar”. Não é. Qualquer linguista mais avançado nas pesquisas contemporâneas sabe que entre fala e escrita não existe essa separação, que é uma coisa muito mais híbrida do que isso, e o livro tenta preservar essas coisas. Se esses jornalistas vissem outros livros didáticos que trazem a variação linguística de maneira ainda mais aguda e mostrando as diferenças de forma mais radical eles iam ficar escandalizados. Mas esse é o Brasil em que vivemos, com uma mídia terrível para não usar outras palavras.

 

Greice Kelly Jorge: Sou bolsista de iniciação científica com a professora Clara e estou analisando os registros de estágio de uma estagiária que trabalhou com variação linguística em sala de aula. Como eu sou nova na universidade, pois este é meu primeiro ano, eu comecei a refletir agora sobre os PCN, as diretrizes. Eu quero conversar ainda com os professores, como eu já disse para a professora Clara, para ver qual a opinião deles, por que eles não seguem os PCN. Eu fui ter acesso à discussão sobre variação, sobre preconceito linguístico, todas essas questões, lendo os seus livros e aqui na universidade. Eu não tinha uma base sobre esse tema no ensino médio, nunca tinha ouvido falar; se foi trabalhado foi muito camuflado. Eu gostaria de saber por quê… Parece tão fácil, os PCN estão ali para os professores seguirem e mesmo assim eles se agarram tanto à gramática tradicional. Eu não consigo entender por que isso acontece.

 

Marcos Bagno: É um drama mesmo… É o mesmo que acontece com os livros didáticos. Na avaliação, a gente recebe livros fantásticos e pensa: “esse livro aqui é uma coisa maravilhosa, se todos adotassem ia resolver todos os problemas”. Mas quando a gente recebe o resultado das escolhas, vê que a grande maioria é dos livros mais tradicionais, mais conservadores, mastigadinhos, com respostinha pronta. Talvez fazendo a sua pesquisa você descubra outras coisas, mas para mim a resposta é muito simples: isso se deve às condições de trabalhos dos professores. A professora Magda Soares tem uma coleção de livros didáticos chamada Uma proposta para o letramento, que se eu pudesse encheria aviões e sairia distribuindo pelo Brasil. Porque é muito boa. São exercícios inteligentes, um trabalho fantástico de reflexão sobre a escrita, sobre a língua. Mas é um livro que exige do professor que ele realmente faça o que está ali. Na parte de reflexão linguística, exige que ele entenda do que ela está falando; na parte de produção de texto, que ele consiga perceber quais são os objetivos que ela quer que o texto alcance. Isso vai exigir dele leitura, reflexão, e a gente sabe que o professor não tem tempo para isso. Tem que dar aula em três escolas, com turmas de cinquenta e tantos alunos para ganhar aquele salário “maravilhoso”… A minha primeira resposta seria nessa linha, que parece até uma resposta de quem está com preguiça de refletir: “condições de trabalho”. Isso eu ouço dos próprios professores nos lugares onde eu vou: “eu conheço o livro da Magda, é maravilhoso, mas não tenho como adotar, porque não tenho tempo de ler”. Porque Magda fala assim: “para você compreender melhor este texto, procure ler tais e tais outros”. E tem uma questão de uma cultura já muito calcificada, essa ideia do certo e do errado, que está muito cristalizada na nossa cultura geral e tem também a questão das condições de trabalho. Mas calma, a sua geração está passando justamente por um período de transição. Vocês estão saindo de um lugar para poder chegar a outro. Neste momento vocês estão no meio do mar… Sem saber ainda aonde vocês vão chegar.

 

Mariane Rocha: Então, eu vou estudar oito semestres de toda uma pedagogia da educação linguística e quando chegar na escola eu não vou conseguir aplicar isso. É por aí?

 

Marcos Bagno: Não, não é não. Você pode fazer. Eu acredito muito na autonomia do professor em sala de aula e acredito que a gente tem que se assumir como profissional que sabe do assunto, que entende da coisa. Eu sempre digo para os professores que vêm se queixar que os pais vão à escola brigar e dizer que é um absurdo que o aluno ainda não aprendeu coletivo… Ou às vezes até mesmo com os colegas de outras áreas… Tem que dizer: “eu sou o professor de português formado para isso, eu sei do que eu estou falando”. E agora a gente tem também o apoio das diretrizes oficiais de educação: “ó, estou fazendo o que o MEC mandou” (risos). Nós estamos passando justamente por esse processo.

 

Nilda de Souza: Mas aí nós não vamos esbarrar na questão da carga horária excessiva, isso tudo que foi falado antes?

 

Marcos Bagno: Não, com isso você não vai esbarrar não, isso vai cair na sua cabeça (risos). Isso faz parte da realidade mesmo.

 

Nilda de Souza: Então, teria que mudar as condições de trabalho?

 

Marcos Bagno: Sem dúvida, isso é primordial.

 

Clara Dornelles: E enquanto não muda?

 

Marcos Bagno: Enquanto não muda, temos que tentar fazer o que é possível e impossível. Para mim é uma coisa muito séria, porque há dez anos as pesquisas revelam que 75% dos brasileiros são analfabetos funcionais. É uma pesquisa do INAF, que é o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional, e esse dado vem se repetindo há mais de dez anos. Como é que a gente pode dormir com um barulho desse… Imagine quem quer viver de livro como eu, que escreve, sabendo que num país desse tamanho, com a população desse tamanho, a porcentagem da população que é capaz de pegar um texto mediamente complexo e entender de maneira clara é muito pequena. São muitos desafios que a gente tem pela frente. A educação não tem sido prioridade, infelizmente, nem mesmo de um governo que a gente esperaria que fosse levar isso mais adiante. Agora essa história de pré-sal é alguma esperança, mas eu nem sei se é uma questão de dinheiro, porque tem muito dinheiro investido em educação, só que muito mal investido. Eu moro em Brasília, conheço muitas pessoas que trabalham no MEC, já fiz vários projetos junto ao MEC e às vezes você tem quatro, cinco equipes fazendo a mesma coisa. Diretorias A, B, C produzindo texto para formação de professor. Por que gastar esse dinheiro todo, tantas vezes, se é possível reunir esses projetos? Tem uma questão burocrática, uma questão de gestão mesmo que precisava ser mais bem feita. E como o cargo de ministro de educação é necessariamente um cargo político… Agora está aí o Mercadante, que não é um educador… Por sinal agora ele queria colocar na secretaria da educação básica uma professora lá do Rio de Janeiro que era detestada por todos os educadores nacionais… Então, fica essa história, e dentro do MEC não existe uma continuidade dos trabalhos. Quando a gente fez, por exemplo, a avaliação do livro do Ensino Médio, nós começamos com uma diretora, no meio do processo ela foi demitida e puseram outra. Quando acontece esse tipo de mudança, a pessoa que entra quer colocar as pessoas de sua confiança, então muda tudo, o projeto para… Então, você contratou 150 pessoas, pagou avião para todo mundo, hotel, diárias e aí: “Ah, não precisa mais…” Então começam essas questões de gestão, a educação não é uma coisa muito simples.

 

Greice Kelly Jorge: É uma curiosidade minha, qual foi a principal ou as principais razões por você se interessar pela área da sociolinguística?

 

Marcos Bagno: Veja só, eu fui criado numa família comunista. Meu pai era militante do Partido Comunista, foi processado durante a ditadura. Desde cedo eu me interessei muito por essas questões sociais. Por influência dele, comecei a ler livros de sociologia muito jovem, e sempre tive muito interesse por línguas. Aí, descobri na universidade justamente que já existia uma área que trabalhava com as relações entre sociedade e língua, que é a sociolinguística. Descobri isso, porque comecei a graduação em Brasília e fui aluno da professora Stella-Maris Bortoni, que eu digo que inoculou em mim o vírus da sociolinguística e nunca mais eu me curei. Então eu falei: “ah, que bom, não preciso inventar, já existe essa coisa chamada sociolinguística”. E foi a partir daí… A possibilidade de refletir sobre a linguagem e as consequências sociais do uso de determinada língua e não outra, as consequências sociais da variação linguística, o que é possível fazer com a língua em termos de dominação, de controle das pessoas. Tive a sorte de começar com a Stella Bortoni, que não é sociolinguista variacionista. Ela trabalha com a sociolinguística interacional. É uma outra abordagem, porque a sociolinguística variacionista, chamada laboviana, na verdade usa os próprios fenômenos sociais como pretexto para  fazer linguística mesmo. O interesse do Labov é conhecer a língua; então: “por que isso aqui mudou? Ah, porque tem uma pessoa da classe X que fala assim e tal”. Mas quando você faz uma sociolinguística na outra direção, se interessa realmente pelas relações sociais intermediadas pela linguagem. Então a gente tem a sociolinguística interacional, antropologia linguística, sociologia da linguagem, política linguística… São essas áreas que também se preocupam muito com essas questões. Foi a partir daí.

 

Clara Dornelles: Marcos, eu queria te perguntar sobre aquela história do vale tudo. Vale tudo na língua? Essa compreensão sempre emerge quando se discute a questão da variação e se defende uma outra concepção de linguagem. Afinal, o sociolinguista está dizendo que qualquer coisa pode, que tudo pode, que o importante é a compreensão? É isso mesmo? Como é que tu enxergas isso? Eu gostaria de te ouvir falar, porque às vezes os próprios alunos leem os teus textos, fazem essa leitura e atribuem a ti a autoria dessa ideia.

 

Marcos Bagno: Bom, tem um livro meu [Não é errado falar assim] em que falo sobre o “vale tudo”. Na verdade, esse discurso do “vale tudo” vem da parte desses conservadores que estão na mídia, como o seu amigo Pasquale, que começou com essa divulgação: “para os “linguistas transloucados”, para os “linguistas deslumbrados, vale tudo”. Na verdade, tudo na língua vale alguma coisa. Cada vez que a gente abre a boca pra falar, ou se põe a escrever é um gesto social que tem consequências, então em termos de valor, tudo tem valor. Mas o que eu tento mostrar, e que não é fácil, é que, primeiro: em algumas esferas da sociedade espera-se que as pessoas se comportem de uma maneira, e em outras, de outra maneira. E aí fica parecendo que também a gente quer que as pessoas sejam comportadinhas. “Ah, então se o ambiente é formal você fala de maneira formal, se o contexto é informal você fala de maneira informal.” Também não é isso. Eu acho que o mais importante da educação linguística é levar a pessoa a reconhecer o que está em jogo em determinado momento de interação. Se aqui está todo mundo formalzinho, arrumadinho e eu sou contra isso, eu posso falar. Eu quero falar para justamente quebrar esse clima, para provocar uma polêmica. Tanto que durante muito tempo tinha esse discurso da adequação. Você tem que se “adequar” ao seu interlocutor, e se o meu interlocutor for um racista, eu não tenho que me adequar de jeito nenhum, eu vou xingar ele. Então, é importante você reconhecer o que está em jogo naquela interação ali, e assumir a sua postura com relação àquilo. Decidir se você quer criar uma convivência pacífica com aquela pessoa, quer participar com ela, ou se você quer realmente se opor. A quebra da expectativa também faz parte das nossas atitudes. Há um grande baile em que todo mundo só pode usar preto e branco, e a minha querida heroína Cher vai de vermelho e é aceita. Ela criou uma situação, provocou alguma coisa… A mesma coisa, por exemplo, com os cantores de hip hop, de rap. Não tem a menor condição de se esperar que eles façam as suas músicas em português padrão literário. A própria coisa que eles estão dizendo, sobre a violência social, racismo etc, perde a sua função se for dita como se fosse um compositor branquinho de classe média. Então, essa questão da adequação também acaba se tornando uma espécie de conformismo, e não é isso. Tudo na língua vale, realmente, mas é importante que a pessoa saiba o valor que tem aquilo ali, o que que tem que ser dito propriamente. Essa discussão exige uma certa filigrana. Fica difícil, porque nós somos uma cultura muito acostumada com as coisas dicotômicas: é homem ou é mulher, é preto ou é branco, é certo ou é errado… As coisas que acontecem entre os dois pólos acabam sendo esquecidas e as pessoas fazem as leituras assim: “ah, ele tá dizendo que não precisa mais estudar gramática! Que bom! Vou jogar todas no lixo!” Eu sempre digo que se forem jogar as gramáticas no lixo, joguem no meu lixo, porque eu coleciono gramática. Ficam dizendo: “Ah agora não precisa mais corrigir o aluno!” O aluno vai falar “nós vai” e nós vamos achar lindo. Não tem nenhum linguista responsável que diga isso. Mas aí, como tem um discurso contrário, dos Pasquales, das Dad Squarisis, e até de figuras como o Bechara, e essas pessoas têm uma divulgação muito maior, têm mais acesso aos meios de comunicação, então fica essa história que “vale tudo”.

 

Clara Dornelles: E tem a questão da concepção de norma padrão, que de certo modo se opõe à visão das variedades cultas. E falta a compreensão do que são essas variedades. E quando você diz: “não ao padrão”, daí eles entendem que é “não” a qualquer tipo de uso prestigiado.

 

Marcos Bagno: Essa não separação entre o padrão tradicional e as variedades cultas reais também precisa ser discutida e é um dos objetivos do meu livrinho mais recente, que é a gramática [Gramática pedagógica do português brasileiro].

 

Mariane Rocha: Tu falas bastante na questão do “bonito” e do “feio”, que não existe nem bonito, nem feio na língua, e aqui no Sul a gente usa o ‘tu’ e muitas pessoas de fora do estado dizem que é falta de educação usar o ‘tu’, que deveria usar o ‘você’. Eu não sei se tu saberias me explicar de onde veio essa noção de que o ‘tu’ é menos formal do que ‘você’, enquanto não é, é uma variação…

 

Marcos Bagno: É uma variação, mas ela é muito característica aqui do Sul. No resto do Brasil, a gente usa o ‘você’ tanto com uma pessoa com quem você está começando a interagir, quanto com uma pessoa mais íntima, por exemplo, um namorado, uma namorada, os filhos. Se eu estou na rua e eu quero uma informação, também uso ‘você’. Como ‘você’ se generalizou dessa maneira, o ‘tu’, para a maioria dos brasileiros, é considerado até agressivo. No Rio de Janeiro, ele é usado agressivamente. Lá se usa o ‘tu’ principalmente nas classes baixas, e quando o pessoal de classe média e alta usa o ‘tu’ é para ofender. Então, se eu estou discutindo com você e você não concorda, você diz: “tu acha que eu vou fazer tal coisa?”. Em outras regiões do Brasil onde se usa também o ‘tu’, como no Norte, existe uma distinção ainda que leve entre ‘tu’ e ‘você’. O ‘tu’ também é para intimidade. Aqui no Rio Grande do Sul é o ‘tu’ para tudo. Para quem não tem o ‘tu’ na sua variedade linguística, ele soa agressivo. Em Portugal, é ainda mais complicado, porque o ‘tu’ é absolutamente íntimo. Se você chamar alguém de ‘tu’ é uma ofensa grave. E ‘você’ é quando há uma quase intimidade, mas que ainda não foi totalmente conquistada. Aqui no Brasil nós aplainamos um pouco, então tem o formal e o informal, ‘senhor’/‘senhora’ e ‘você’. Em alguns lugares, ‘você’ com ‘tu’, e aqui no Sul é o ‘tu’. Essa variação no tratamento para quem chega aqui no Sul e não está acostumado soa meio agressiva. Eu estive agora em Belém do Pará e foi muito curioso porque uma professora do Rio que estava comigo disse: “olha que engraçado, eu achava que todo mundo aqui falava ‘tu’, mas aquela menina da universidade me chama de ‘você’”. Eu falei: “ah, é porque aqui existe uma diferença entre o ‘tu’ e o ‘você’, ela nunca vai se referir a uma professora como ‘tu’, mas como ela já nos conhece ela nos chama de ‘você’ [e não de senhor e senhora] para manter o nível médio de formalidade”.

 

Rodrigo Borges de Faveri: Outras línguas usam essa diferenciação entre formalidade e intimidade, a prática do “tutear”, no espanhol, no francês….

 

Marcos Bagno: É, é o que a gente chama de sistema T-V, que é tirado do francês, é o ‘tu’ e ‘vous’. Muitas línguas têm esse sistema assim binário, outras têm mais coisas. O francês, apesar disso, tem três níveis. Quando a gente trabalha com o francês, a gente pode se dirigir diretamente à pessoa como ‘tu’, quando tem intimidade; existe um nível médio em que você chama a pessoa pelo primeiro nome, mas usa ‘vous’. Então, por exemplo, o professor com os alunos, ou os colegas na universidade com quem ainda não tem intimidade, então eu posso dizer assim: “Clara, vous voulez…” Então eu uso o primeiro nome dela, mas eu uso o ‘vous’. E existe o ‘vous’ de respeito que eu chamo pelo sobrenome e com ‘vous’. Existem esses três níveis de formalidade no francês. A tendência aqui no Brasil é curiosa, que é realmente informalizar, de maneira geral. Eu estava escrevendo a gramática [Gramática Pedagógica do Português Brasileiro] e falei assim: “será que eu estou sonhando que as pessoas estão passando de ‘senhor’ para ‘tu’ e ‘você’ com a maior facilidade? Eu fiquei com isso na cabeça e fui ver televisão e tinha uma entrevista, uma repórter entrevistando o Ivo Pitanguy, e ela disse assim: “doutor, o senhor disse que tem umas coisas que te irritam muito”. Ela passou de ‘doutor’, para ‘senhor’ e ‘te irritam’. Eu recebo muitas mensagens assim: “professor, estou escrevendo para o senhor, para saber o que você acha de tal e tal coisa.” Nós estamos informalizando de maneira muito radical. Para as pessoas mais velhas isso é estranho. Hoje em dia, os filhos chamam os pais de ‘você’… Na minha casa, como nós somos uma turma muito grande, tem uma metade que chama os pais de ‘você’ e outra metade que chama de ‘senhor’ e ‘senhora’. Foi uma transição muito rápida. Isso tem a ver com o final do regime autoritário, com a liberação quase obscena dos costumes… Às seis da tarde tem mulher pelada, homem pelado na televisão,  na novela das seis… Está tudo assim muito… Aqui, agora, nesse momento, já… E o tratamento linguístico vai acompanhando essas mudanças.

 

Clara Dornelles: Marcos, nós te agradecemos muito, e continuamos então a conversa na palestra.  

 

image2                                                           Flyer de divulgação da palestra realizada em 2012

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