Ano 09 nº 087/2021 – Lima e Machado se encontram – Parte I
Por Adriano de Souza
O ano é 1914. Affonso Henriques de Lima Barreto dá entrada no Hospital Nacional de Alienados, medida tomada pelo irmão, após presenciar o estado de perturbação mental e de alucinações que o escritor começava a demonstrar, quadro esse intensificado, talvez motivado, pelo constante e incontrolável consumo de bebidas alcoólicas. Atormentado pela condição física e pelo degradante ambiente do hospício, Lima, enquanto fuma sentado ao sol, vê surgir à sua frente a figura de Machado de Assis, morto em 1908.
Machado de Assis e Lima Barreto. Imagem disponível em https://www.novacultura.info/post/2018/08/26/machado-de-assis-x-lima-barreto. Acesso: 19/06/2021.
– Ora, ora se não é o Lord do Cosme Velho. A que devo tamanha honra de ilustre visitação? Mais um imortal a tripudiar de minha desgraça? Ou seria Vossa Mercê um obséquio enviado pela Morte para conduzir-me ao além?
– Devias deixar da bebida, meu caro. Vês onde chegaste?
– Oh! Falou a voz da consciência Moral da Academia! Aquele que nunca fora visto à companhia fortuita em casas de cômodo… Conheceste amargores dos que só a cana destilada adoça?
– E para mim foi fácil?
– Lá vem a pena da galhofa…
– Família remediada, avós afrodescendentes, mal frequentei escolas, Lima. Aliás, desde moço trabalhando de aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, não me sobrou tempo para regalias do Segundo Império na Escola Politécnica.
– Regalias…? Balela… E a República veio e o que me regalou? Um pai louco, uma família falida, um cargo de amanuense naquela Secretaria de Guerra, ouvindo dia e noite os militares conspirando seus conchavos. Aliás, acabei de ler Esaú e Jacó e o Memorial de Aires, seus últimos dois. Não estão mal… Pensava que nunca irias ao tema da República, mas aí está.
– A República vai mal. Vício de origem.
– Mas não foi o que li aí escrito. Por que te escondes tanto? Dás todo esse espaço a esses aristocratas endinheirados… Insistes nessas tramas de burgueses, supostas traições, valsas na Corte para adoçar o chá das vetustas e esnobes elites escravistas… Conta-me a verdade: foste mesmo abolicionista?
– Duvidas…? Leste as Relíquias da Casa Velha?
– Sim… que tem?
– Pai contra mãe.
– Sim, os contos… Sei. Mas e os romances? O romance é o grande gênero do nosso tempo. Que causas defendes?
– Eu, tão somente eu, posso ser a minha própria bandeira. Deverias saber disso. Ademais, literatura não se faz com causas, meu caro. Fi-la com personagens: alguns fortes e levianos, outros indiferentes e insensíveis; como na vida.
– Gozado, escreveste O Alienista, e olha quem veio parar no hospício? Entendeu nossa diferença, senhor acadêmico? Não pertenço a grupo de literatos nefelibatas, estou no chão dos subúrbios, ao lado dos negros, das mães pretas, da gente que construiu esse país e agora está por aí, nos hospícios – como eu – nas ruas, abandonada à própria sorte. Aliás, vamos falar sobre a histórias dos subúrbios?
Nesse ínterim, surge o médico plantonista, que vem ter junto ao paciente uma entrevista rotineira. Constrangido, como se estivesse a falar sozinho, Lima Barreto encara o doutor, cumprimenta-o cordialmente perguntando-lhe sobre o tempo. No prontuário, o médico registra a necessidade de aumentar a dose de purgativo e ópio.
Créditos da Foto: Viviane de Vargas Geribone
Neste espaço, Adriano de Souza compartilha mensalmente experiências de leitura. Na Unipampa/Campus Bagé-RS, é professor de Português desde 2015. Em 2021, gravou seu primeiro trabalho musical intitulado “Milongas do Olvido”, que pode ser conferido em todas as plataformas digitais de música.