Ano 09 nº 075/2021 – Lembranças de outros verões: uma leitura de Ana Martins Marques
Por Mariane Rocha
a única coisa que não muda porque muda sempre
Foto: Mariane Rocha
Oi, leitoras e leitores!
Nos encontramos mais uma vez para conversarmos sobre a poesia contemporânea, essa, que venho chamando assim, no singular, mas que mesmo na limitada amostra que tenho trazido por aqui já se revela múltipla e plural. Dos livros de poemas que habitam em mim — minhas estantes, meu imaginário, meus dispositivos — há de tudo um pouco: aqueles lidos apenas uma vez, logo esquecidos e empoeirados; aqueles que ficam martelando em minha mente muito tempo depois de finalizados; aqueles que faço questão de compartilhar com amigos e alunos; aqueles que seguem existindo comigo ao longo da minha vida, pedindo para serem revisitados de tempos em tempos. A poeta que trago a vocês hoje pertence ao último grupo e, embora circule pelos demais, é uma dessas “poetas da vida”, cuja presença frequentemente se impõe em formato do seguinte pensamento: “preciso ler Ana Martins Marques!”.
E eu não poderia escolher outra poeta para conversarmos hoje, já que em junho a Ana não somente publicará um livro novo (Risque esta palavra) como também lançará uma nova edição de A vida submarina (2009), livro que estava esgotado há anos em todas as livrarias do Brasil. A esses dois, se somam também os anteriores Da arte das armadilhas (2011) e O livro das semelhanças (2015). Além deles, a poeta mineira publicou Duas janelas (2016) em parceria com o crítico e poeta Marcos Siscar e Como se fosse a casa (2017) juntamente ao poeta Eduardo Jorge. Ou seja: Ana Martins Marques já tem uma trajetória consolidada em nossa literatura e há grande expectativa da crítica em torno de seu novo livro, que promete dar continuidade a uma poesia de intenso caráter reflexivo-existencial.
Não é somente pelo seu retorno ao cenário de publicações que escolhi a Ana para nossa conversa: de fato, a venho escolhendo há alguns anos, desde que O livro das semelhanças (2015) capturou minha atenção e me ofereceu, a cada reencontro, companhia, acolhimento, e momentos de introspecção. Esta poética, feita por uma das principais vozes das primeiras décadas deste século, alia temas existenciais que perpassam toda a tradição poética — como o amor, a solidão, o esquecimento, o envelhecimento — a um olhar atencioso dedicado às minúcias cotidianas que nos passam despercebidas — os utensílios domésticos, os objetos pessoais, as fotografias.
Museu
(O livro das semelhanças)
Se houvesse
um museu
de momentos
um inventário
de instantes
um monumento
para eventos
que nunca aconteceram
se houvesse
um arquivo
de agoras
um catálogo
de acasos
que guardasse por exemplo
o dia em que te vi atravessar a rua
com teu vestido mais veloz
se houvesse
um acervo
de acidentes
um herbário
de esperas
um zoológico
de ferozes alegrias
se houvesse
um depósito
de detalhes
um álbum
de fotografias
nunca tiradas
A temática da casa, presente em todos os seus livros, se mostra mais atual que nunca no momento em que hoje vivemos, quando o mundo externo se torna uma ameaça à nossa saúde e nos recolhemos em nossos lares. Falar das louças, dos móveis, das frutas: o que poderia ser, há poucos anos, considerado uma temática reservada às mulheres, historicamente associadas aos espaços domésticos e, por isso, subestimado em importância, retorna hoje em Ana Martins Marques como uma nova leitura das possibilidades de existir e de habitar o espaço, proporcionando uma reflexão sobre aquilo que, fora de nós mesmos, constitui nossa identidade.
(Sem título, Como se fosse a casa)
As casas abandonam a si mesmas
fogem de si mesmas
um dia você retorna
e a casa não está lá
está apenas seu molde
casca ou carcaça
sai então à caça
da casa
em viagem
ou fica lá
onde já não está
A sensação de confinamento que pode ser ocasionada pela recorrência dos espaços internos é atenuada pela intercalação desses poemas com aqueles que tematizam a cidade, a vida urbana, o mar — a vida é, afinal, submarina. São lembranças de outros verões e outras paisagens que se misturam às referências mitológicas, seres reais e imaginados: sereias, centauros, dragões, ciclopes, Ulisses, Penélope, Safo. Há sempre uma saudade, uma nostalgia de um tempo em que não é aquele em que a poeta se encontra, de notícias de espaços em que nunca habitou: “Se eu vivesse/ à beira-mar/ teria/ outra cor/ outros cabelos”.
Mar (O livro das semelhanças)
Ela disse
mar
disse
às vezes vêm coisas improváveis
não apenas sacolas plásticas papelão madeira
garrafas vazias camisinhas latas de cerveja
também sombrinhas sapatos ventiladores
e um sofá
ela disse
é possível olhar
por muito tempo
é aqui que venho limpar os olhos
ela disse
aqueles que nunca viram
o mar
que ideia farão
do ilimitado?
que ideia farão
do perigo?
que ideia farão
de partir?
pensarão em tomar uma estrada longa
e não olhar para trás?
pensarão em rodovias
aeroportos
postos de fronteira?
quando disserem
quero me matar
pensarão em lâminas
revólveres
veneno?
pois eu só penso
no mar
Uma poesia que nos leva, então, a diferentes destinos: ao íntimo, ao urbano, aos encontros cartográficos ocasionados pelo acaso mas, principalmente, aos caminhos que precisamos percorrer dentro de nós mesmos. Às memórias e suas falhas — as quais nem as fotografias nem dispositivo algum dão conta de suprir —, às melancolias incessantes da nossa existência e à necessidade constante de pararmos e olharmos para quem somos, utilizando as ferramentas, literais e metafóricas, que tivermos.
Espero que a lírica da Ana acompanhe vocês nessa jornada! Desejo uma boa leitura a todos. Até mês que vem!
Mariane Rocha é leitora desde que se conhece por gente. Graduada e mestra em Letras, atualmente é professora de literatura e língua portuguesa no IFSul, em Bagé. Estuda poesia contemporânea e suas articulações com fotografia e cinema no doutorado em Letras da UFPel.