Ano 08 nº 162/2020 – Lanceiro Negros – Heróis que inspiram a ressignificação da nossa história/ Coluna do Jacinto
Por César Jacinto
Nos últimos anos, o debate tem se estabelecido sobre a ‘Revolução Farroupilha’ – suas causas e seus legados – que tem sido, de certo modo, ressignificada e revista em alguns pontos, pois a historiografia oficial e conservadora sempre fala dos conservadores donos de estâncias e suas razões para declarar guerra ao Império. Embora nunca tenha se preocupado em dar voz aos oprimidos da história: peões, homens pobres de todas as cores e, principalmente, os negros escravizados que lutaram pela liberdade e foram impiedosamente ludibriados.
‘Lanceiros Negros’ foram bravos guerreiros que se incorporaram ao exército farroupilha para lutar em troca da sua liberdade, já que eram os negros escravizados que prestavam serviços para os fazendeiros, principalmente na Pampa gaúcha. Segundo historiadores como Moacyr Flores, Euzébio Assumção e Juremir Machado da Silva, eram cerca de 400 soldados, que formavam duas companhias e empunhavam uma longa lança, manejada com maestria e agilidade.
No dia 14 de novembro de 1844, por volta de 2 horas da madrugada, ocorreu um episódio histórico que durante muito tempo ficou conhecido como a ‘surpresa de Porongos’ – termo descaracterizado, pois não representa a descrição real do fato. Numa tentativa de ressignificação historiográfica, hoje, se fala em ‘traição’ e em ‘massacre’ de Porongos, o que define com fidelidade o que de fato representou esse momento histórico. Porongos fica localizada a cerca de 12 km do centro da cidade de Pinheiro Machado, Sul do Rio Grande do Sul. Nesse local, o movimento negro vem tentando construir um monumento para homenagear esses destemidos guerreiros que foram traídos por David Canabarro.
Os próprios espaços de preservação da cultura gaúcha, os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), com o propósito de ‘propiciar a integração’, acabam subterfugiando o racismo que está institucionalizado em nossa sociedade; ressaltam a cultura gaúcha sem promover o debate em torno de como esse episódio da história farroupilha foi sendo construído de forma seletiva e excludente, negando o protagonismo a outros segmentos populacionais que não faziam parte das camadas detentoras do poder, a saber os nossos heróis lanceiros negros.
Houve crescimento, inclusive, na participação de negros e negras nas entidades tradicionalistas, mas não chega ainda a caracterizar a formação e organização de um movimento negro nos CTGs, sendo um espaço que praticamente desconsidera o debate em torno da participação dos negros na ‘Revolução’ de 1835. Uma iniciativa que conheço é a do Piquete Lanceiros Negros, de Porto Alegre, formado por profissionais liberais e servidores públicos, que articula essas questões relativas à participação negra na Guerra Farroupilha.
Nesse sentido, observando os rumos que a História – com H maiúsculo – deu aos lanceiros negros, fica bastante claro que o racismo estrutural atua, em todos os setores da sociedade, como um elemento de impedimento da mobilidade e da ocupação de espaços de poder nas instituições. Se alguém, porventura, ainda discorda desse posicionamento, responda os questionamentos a seguir: Quantas primeiras prendas negras o Rio Grande do Sul já teve? Quantos patrões e patroas de epiderme preta você conhece, que não sejam de piquetes familiares? Quantos negros já assumiram o cargo de presidente do MTG?
Então, temos que saudar os nossos heróis negros: Salve os lanceiros negros! Salve os heróis da resistência, que eles inspirem as novas gerações para as lutas que estão por vir – e que serão muitas!
César Jacinto é professor, graduado em Pedagogia pela UERGS, com especialização em Diversidade Cultural e Mestrado em Ensino pela Unipampa. Escritor, cronista e pesquisador da História e Cultura Afro-brasileira e militante do Movimento Negro.