Ano 08 nº 194/2020 – Iaiá Garcia, o preto Raimundo, a questão da branquitude e o que é mesmo literatura…?/ Coluna Adriano de Souza
Por Adriano de Souza
Cada vez sei menos responder a esta pergunta a que todo/a estudante de Letras é apresentado/a já nas primeiras lições: o que é literatura? Até fui estudar literatura pra ver se conseguia uma resposta que, ao menos, sossegasse minha obstinação a propósito dessa questão, uma resposta que não fosse tão vaga como literatura é uma convenção e, como tal, cada época lhe atribui diferentes sentidos, de maneira que o que é literatura hoje amanhã pode não ser e vice-versa. No fim, acho que não saber o que é literatura me faz, por teimosia, ler literatura na esperança vã de ter – para mim, pelo menos – uma resposta satisfatória.
Por exemplo, por que Iaiá Garcia, romance de Machado de Assis, publicado em 1878, é literatura? Ou então, dito de outro modo, o que é literatura em Iaiá Garcia? Se entendo que um/a escritor/a é um ser de seu tempo, que procura pensar e representar sensivelmente um dado momento histórico, então essa pergunta me obriga a buscar subsídios para compreender o mundo concreto do qual escritor e obra formaram parte, mais particularmente – no caso de Machado de Assis – o Rio de Janeiro, capital do Brasil de fins do século XIX, e o contexto sociopolítico de transição da Monarquia para a República. Ocorre que reunir tais subsídios pode até me ajudar a entender o contexto mais imediato com que a obra dialoga, mas explica o seu estatuto literário?
Digamos então que literatura seja uma manifestação simbólica escrita ou falada com vestígios históricos de um tempo determinado, mas não a ele subordinada ou dependente; algo que conserva em si a capacidade de transcender o seu tempo presente imediato, de maneira que novas e novas gerações seguem interessadas em visitá-la à procura de melhor conhecerem-se a si e aos seus. Sendo assim, o que explicaria que um texto literário de 1878 siga interessando pessoas, e outros textos da mesma época tenham caído no esquecimento? Literatura tem prazo de validade? A ‘melhor’ literatura é a que por mais tempo se mantém literatura?
O mais curioso de se notar – uma hipótese – é que essa tal de literatura parece ficar mais interessante conforme melhor arranjada para ilustrar determinados aspectos da realidade e do mundo concreto com os quais as pessoas, ainda que em diferentes tempos históricos e momentos da vida, parecem estar sempre se debatendo. Isso equivaleria a dizer, então, que as pessoas vão até a literatura para lerem aspectos da realidade pelos quais se sentem intrigadas. Seria, então, o compromisso com o que chamamos ‘real’ que mantém literária essa tal de literatura?
No caso de Iaiá Garcia, romance cuja trama se passa entre os anos 50 e 70 do século XIX, há vários aspectos aí representados que são de grande interesse para a compreensão de elementos do mundo concreto presentes, inclusive, do século XXI. Apenas para ficar com um, Machado de Assis é agudo na representação de um tipo de comportamento social que mais recentemente a literatura sociológica tem chamado de branquitude e todos os seus romances de primeira fase (já comentados aqui nesta coluna), a saber, Ressurreição, A mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia, ajudam na composição de um quadro com tais elementos: uma classe de pessoas ensimesmadas, uma perspectiva racial que só percebe a si mesma; insensível à percepção de seus privilégios, com traços marcadamente moralistas e arrivistas, capazes de cometer trambiques e trairagens para conseguir o que almejam, um grupo de pessoas para quem a negritude, para lembrar Adilson Moreira, é a antítese moral, intelectual e estética da branquitude, que é, meio que naturalmente, o padrão moral, intelectual e estético.
Estou pensando a noção de branquitude a partir da pesquisa da psicóloga e professora Lia Vainer Schucman, para quem:
[…] a branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que a ocupam [nota da autora: É unânime, nos estudos sobre branquitude, que sujeitos descendentes de europeus sejam os que mais ocupam este lugar. No entanto, dependendo da configuração histórica, econômica e social, outros sujeitos podem ocupá-lo.] foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade. Portanto, para se entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem as estruturas de poder concretas em que as desigualdades raciais se ancoram. Por isso, é necessário compreender as formas de poder da branquitude, onde ela realmente produz efeitos e materialidades. (p. 60-61).
A autora, como pesquisadora social, faz menção a um conceito que opera no plano das relações sociais, ao qual chegou mediante observação sistemática e pesquisa científica. Em seu turno, Machado de Assis, em Iaiá Garcia (e outros, como já mencionei), pelo domínio dos mecanismos próprios à estética, parece um silencioso observador dessas estruturas e microestruturas que operacionalizam privilégios raciais, de classe e de gênero. Um exemplo que pode resumir isso tudo: o caso do personagem Raimundo, em Iaiá Garcia ou, como quer o narrador do romance, “o preto Raimundo”. Assim ele nos é apresentado:
Raimundo parecia feito expressamente para servir Luís Garcia. Era um preto de cinquenta anos, estatura mediana, forte, apesar de seus largos dias, um tipo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e feliz. Quando Luís Garcia o herdou de seu pai, — não avultou mais o espólio, — deu-lhe logo carta de liberdade. Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregara-o ao colo, e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para dilacerar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luís Garcia viu só a generosidade, não o atrevimento; palpou o afeto do escravo, sentiu-lhe o coração todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu (p. 388-389).
Nesse trecho revela-se o que parece uma relação de profunda, recíproca e cordial lealdade entre o ex-dono e seu ex-escravizado feito livre, que vivem numa fraternal e idílica comunhão. Contudo, ao fim do romance, caso ainda houvesse dúvida, percebe-se não passar de um engodo essa suposta ‘comunhão entre iguais’, dado que, quando está em seu leito de morte, despedindo-se dos seus e dando as últimas recomendações, Luís Garcia sequer lembra de seu ‘grande amigo’, que fica no jardim chorando a sua morte, sem nem poder entrar em casa para dele se despedir.
O que incomoda a muitos (e eu me incluo aí nesse muitos) é a placidez com que o narrador trata do tema, que me soa como um quê de fatalismo e de conivência com a questão da escravidão. Por outro lado, o conflito racial brasileiro, representado em termos de uma convivência harmônica entre forças assimétricas de poder, pode estar simbolizando, talvez, o esboço do que viria a se chamar, no debate sociológico, mito da democracia racial. Fato é que não há, na narrativa, qualquer sombra de denúncia ou questionamento desse estado de coisas, cabendo ao/à leitor/a fazê-lo, se assim julgar pertinente. Aqui a perspectiva é de outra ordem, não saberia dizer qual, mas suspeito que esteja aí parte relevante da singularidade do autor. Enfim, como esse texto de fins de século XIX se permite a questionamentos tão pertinentes ao nosso tempo? Em outras palavras, qual seria a natureza desse elo que medeia as problemáticas entre passado e futuro? Linguagem? De que realidades ela se nutre?
E eis que, assim como veio, foi-se a literatura, deixando tão crua e dura a realidade, de tal maneira que, se havia fronteiras entre uma e outra, já não sei mais de que são feitas.
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Você encontra a obra de Machado de Assis em:
encurtador.com.br/eDEOT Acesso em 17/10/2020.
Para esse texto, a obra lida foi a seguinte:
ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. In.: ASSIS, Machado de. Todos os romances e contos consagrados: volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. [1878].
A obra referenciada neste texto sobre o conceito de branquitude é:
SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. 2ª edição. São Paulo: Veneta, 2020 [2014].
Conheci essa obra por meio da leitura de:
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
Quando menciono Adilson Moreira neste texto, me refiro a:
MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
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Adriano de Souza, no mundo, é só mais um. Em seu país, não é mais do que ninguém. No Rio Grande do Sul, nasce a cada mês de julho. A Santa Maria volta sempre que precisa se reencontrar.
Em Camobi, amarelou seus verdes anos. Em Bagé faz análise. Em casa, pelas cordas do violão, vai tocando a vida, às vezes desafina, outras não.