Ano 07 nº 054/2019 – HOJE NÃO ESCREVO / Coluna da Mariane
Há dias em que a escrita não rende. A ideia não vem, as palavras, como diria Drummond, rolam num rio difícil. A famigerada criatividade ocupa todos os espaços, mas não flui no fluxo cérebro-dedos-tela. Os prazos acenam e vão embora e o desespero de não cumpri-los contribui para afastar qualquer resquício de ponto de vista que pudesse andar por aqui.
Tudo já foi dito e o que não foi dito, sinto muito, não vai ser dito hoje, digo eu mesma para mim — eu mesma, minha versão maquiavélica que cumpre o papel do diabinho no ombro esquerdo. Como sou um pouco narcisista, meus anjos e demônios são meras versões de mim.
Já que não posso deixar meus leitores sem texto e quanto mais penso, mais as palavras se refugiam na noite (Drummond, de novo), eu resolvi compartilhar com vocês uma crônica deste que exigiu a presença no meu texto de hoje, assim como exige toda vez que escrevo, toda vez que reflito sobre literatura, toda vez que analiso alguma obra. Drummond, tão conhecido por sua poesia, mas cujo trabalho com a crônica é extenso, leve, irônico, importante.
Reproduzo abaixo a crônica que dá também título a este texto e desejo, a mim mesma, mais sorte no próximo mês, para que eu não precise recorrer às palavras alheias, embora eu saiba que toda palavra minha é também palavra do outro. Peço aos leitores que sejam compreensivos com meu bloqueio, mas que concordem que trocar um texto meu por um texto drummondiano, é um ganho imenso. Aqui vai:
HOJE NÃO ESCREVO
Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos.
Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.
O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego – às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.
Ah, você participa com palavras? Sua escrita – por hipótese – transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.
Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.
E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia… explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando…
Então hoje não tem crônica.
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Poeminha da semana
Ideias para um livro
I
Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance
II
Uma antologia de poemas-
-epitáfios
III
Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram
IV
Uma antologia de poemas
que atendam às condições II e III
V
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas
VI
Este livro
de poemas
beijos e até a próxima coluna,
Mariane é leitora desde que se conhece por gente, graduada em Letras, especialista em Literatura Inglesa e mestra em Letras na área de Literatura Comparada. Atualmente é professora de Português, Literatura e Inglês no IFSul em Jaguarão e doutoranda em Letras, com ênfase em Literatura, cultura e tradução na UFPel.