Ano 06 nº 054/2018 – Eu não pertenço a Bagé, eu sou Bagé.

eu não pertenço a bagé

Por Ana Isabel de Sousa Amorim

De todas as coisas que já vivenciei, Bagé foi e é, com toda a certeza, a mais curiosa delas. Curiosa não é bem a palavra, acredito que aterrorizante seja mais especifica. Não consigo compreender como uma cidade que tem tanta beleza e história a oferecer pode ser soterrada embaixo de um comportamento cultural tido como aceitável. Não entendo como em uma cidade que vivenciei tanta hospitalidade, pode oferecer tanto machismo, homofobia, racismo como se fosse algo normal, cotidiano.

Em minhas visitas ao museu, não vejo homens como Adão Latorre sendo representados, mas vejo Médici, vejo o autoritarismo, a ditadura, vejo o culto a tudo o que lutamos contra durante décadas. Por que homens como Médici merecem uma ala para a sua marca tenebrosa na história enquanto homens como Adão Latorre são esquecidos e sucumbidos em meio a uma cultura que venera o que há de pior no ser humano?

Por que não há uma ala para mulheres e as poucas referências que há são relacionadas a vestimentas ou a prostituição? Por que reduzir as mulheres a santas ou putas dentro de um ambiente cultural?

Eu não entendo. Não entendo como uma cidade que sobreviveu a guerras, que se manteve em crises, prefere reverenciar a história de forma tão grotesca enquanto poderia mostrar a história daqueles que são eternamente apagados. Não entendo como uma cidade esquecida no tempo insiste em reverenciar aqueles que os abandonaram.

Bagé não é turística, não é grandiosamente importante, não é limpa. Bagé é o que restou da fronteira, é o caminho de ida e volta de muitos, somos a mistura das regiões, cada um de um lugar tentando achar o seu lugar. Mascarando nossos preconceitos com movimentos que virtualmente inspiram luta, mas pessoalmente inspiram fracasso. Somos o que restou, e resistimos.

Mas não são as nossas histórias contadas nas paredes ou na cultura, não são os nossos corpos respeitados nas ruas, não são as nossas vozes ouvidas entre os que detêm o poder. Somos marionetes, a espera de um milagre, ou, como alguns adoram lembrar, a espera da barragem.

É irônico dizer somos, eu não sou de Bagé, mas me sinto parte dela. Me sinto parte de sua história, de sua cultura, de sua luta e de sua ignorância, me sinto parte do seu fracasso, e eu sou. Enquanto eu viver aqui, enquanto as suas ruas frequentar, enquanto o seu museu for o meu local de paz e a capela da praça do coreto for o meu lugar de orações, eu sou parte daqui. Assim como cada estudante que se torna parte desta cultura, assim como cada um que passou por aqui antes de mim e fez deste lugar o seu lar, somos parte disso.

E isso é engraçado, pois não me vejo enraizada em uma cultura que defende o linchamento de 2 adolescentes por enterrarem um natimorto, não me vejo enraizada em uma cultura onde o dono de um dos bares mais famosos da cidade bate em mulher enquanto todos os clientes observam inertes, não me vejo enraizada em uma cultura que defende o militarismo como a melhor opção de governo, não me vejo enraizada em uma cultura em que o centro é supervalorizado enquanto os bairros ao redor são esquecidos e marginalizados, deixando a população a deriva da própria sorte.

É engraçado pois eu não sou de Bagé, mas sou Bagé. Sua história está impregnada em mim, seus problemas irão me perseguir independente de onde eu for. Não há como esquecer tudo o que eu vi, vivi e aprendi aqui, e não há como deixar de odia-la por isso, assim como não há como deixar de ama-la por ser como é. Eu não tenho como esquecer todas as belezas vistas por mim, todos os animais resgatados, todos os arco-íris acima do prédio espelhado que pode ser visto do centro. Não tenho como esquecer Vitório, a minha melhor e pior memória de Bagé, e sua breve vida ao meu lado. Não tenho como esquecer os presentes da vida conquistados aqui, os beijos roubados na praça do coreto, as risadas no PUB em frente a estação.

A mim, humilde serva do destino, só me resta observar a vida girar em torno de mim e aguardar as novas surpresas que essa cidade sempre tem a oferecer, a mim, só resta permanecer sendo Bagé em sua essência e ouvir sua história como quem ouve um segredo. Quem sabe algum dia alguém, além de mim, se interesse pelo outro lado da moeda e decida falar.

 

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