Ano 08 nº 139/2020 – Emicida: o discurso de um dos mais emblemáticos artistas da atualidade
Por Willians Barbosa
Fonte: Jouis Fotografia
Seu nome é Leandro Roque de Oliveira. Profissão: rapper, cantor e compositor. Prestes a completar 35 anos de idade, seu legado ao País já é enorme no campo das artes e das lutas antirracistas. Como sugere seu nome artístico, vindo de ‘’homicida’’, suas rimas são ‘’de matar’’ – instrumentos afiados que abrem e expõem as chagas da nossa sociedade. O paulistano tem total consciência de que tudo nesse mundo é político e que ele, como artista, pode ser uma arma poderosa contra o fascismo.
De imediato, os títulos de seus trabalhos já demonstram essa ênfase no conteúdo. Nomes como “Pra quem já Mordeu um Cachorro por Comida, até que eu Cheguei Longe…” (seu primeiro EP, de 2009); “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui” (2013); e “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…” (2015) são apenas alguns dos exemplos.
Inclusive, seu ativismo já lhe rendeu uma breve prisão, em 2012, por “desacato à autoridade”. É que, enquanto performava a música “Dedo na ferida”, ele instigou a plateia a fazer gestos obscenos para os policiais militares presentes. No entanto, deve-se observar que, na canção, o rapper clama “foda-se vocês, foda-se vocês (a fúria negra ressuscita outra vez)” enquanto, no clipe, são apresentadas cenas de violência policial. O que elucida o contexto da referida performance. Pois, como nessa mesma canção ele diz, “o rap ainda é dedo na ferida”. Na ocasião, a hashtag #LiberdadeEmicida ganhou instantaneamente o topo dos trending topics do Twitter.
Há de se notar que, indo além das mensagens de suas músicas, Emicida estende seu discurso ao mundo das coisas reais. Não é raro o artista se pronunciar sobre episódios que acontecem na comunidade por um viés que, nem sempre, a mídia tradicional atende. Sobre a pandemia por causa da Covid-19, por exemplo, em pleno Domingão do Faustão, Emicida reflete: “…Por um lado, a gente enfrenta um vírus que se espalha muito rápido, mas que não tem uma letalidade tão grande, agora, o que é extremamente letal são os abismos sociais que a nossa sociedade produziu e finge que não existe. Todas as pessoas estão sujeitas a se contaminar com o Covid-19, mas nem todas as pessoas podem se tratar após se contaminar”.
Na mesma oportunidade, explanou também sobre recentes casos que, como coletividade, nos custaram caros, como o do menino Miguel, que foi abandonado no elevador, e o do assassinato de George Floyd por policial nos Estados Unidos. Sobre este último, e fazendo um paralelo com a nossa realidade, ele afirma que o brasileiro pensa erroneamente que a questão no nosso país é diferente, arrematando: “É por isso quando uma nova geração emerge e traz à tona um discurso de que não, a gente não vive uma democracia racial, a gente vive um estado de desespero, de emergência, que quanto mais escura a sua pele mais perigoso é”.
Porém, casos mais antigos, que infelizmente já foram varridos da nossa memória, também foram comentados pelo rapper. Faz bem lembrar do caso da família negra alvejada com 80 tiros por “engano” por policiais militares. Sobre este, Emicida foi categórico: “Se o Brasil tivesse respeito por seus cidadãos, era para este País estar pegando fogo”. Tendo angariado espaço na grande mídia, genuinamente branca, é master a comunidade negra ter como porta-voz alguém que não suaviza o discurso por estar onde está.
Em seu mais novo disco, AmarElo, lançado em 2019, Emicida desafia a intolerância e flerta com a resistência. A principal faixa, a que dá título ao álbum, é uma releitura do hino de Belchior, cantada juntamente com Pabllo Vittar e Majur. O refrão “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” voltou a ser um dos mais compartilhados por pessoas militantes nas redes sociais, geralmente como legenda de foto.
Outro forte impacto cultural presente em AmarElo é Ismália, com participação de Larissa Luz e Fernanda Montenegro. Aqui novamente a bandeira preta é bradada: “A felicidade do branco é plena / A felicidade do preto é quase”. A atriz declama poema de Alphonsus de Guimaraens, que contribui para o conceito do trabalho, cujo foco é o discurso social. Outras parcerias também dão o tom de AmarElo, como com a MC Tha, Zeca Pagodinho e Drik Barbosa. A sonoridade traz elementos de batuque e versos falados; a luta é entremeada com letras mais suaves, sobre amizade e simplicidade da rotina.
Com maior apelo midiático, os videoclipes facilitam para que o público absorva mais rápido o conceito de determinado trabalho. E Emicida lançou mão desse trunfo várias vezes durante sua carreira. Para deixar apenas nos mais impactantes, temos a arrepiante “Boa Esperança” (2015), que, com linguagem cinematográfica, retrata a rebelião de empregados em uma rica mansão; a emocionante “Mãe” (2015), que conta com a presença da própria dona Jacira; e a singela “Passarinhos” (2015), com Vanessa da Mata, que mostra a relação do rapper com o mundo da leitura. Ambas as três produções são do álbum “Sobre Crianças…”.
Seu álbum antecessor, o “O Glorioso Retorno…”, tem aquela vibe de conquistas pessoais, de autossuperação, em que Emicida se apropria do lugar de menino de periferia, que mesmo com as adversidades, ainda sonha. Ele, de imediato, abre com o manifesto “Milionário do Sonho”, com Elisa Lucinda: “É difícil para um menino brasileiro, sem consideração da sociedade / Crescer um homem inteiro, muito mais do que metade”. Em sequência, temos “Levanta e Anda”, com Rael, que viria a ser um dos hits da Copa do Mundo, constituindo o momento em que a mídia se dobrava ao talento do rapper. É desse álbum, uma das canções mais aclamadas de sua carreira, o “Hoje Cedo”, com a roqueira Pitty, aqui já cantando sobre a fama. Essa é a segunda parceria inusitada dele, depois de tocar com NX Zero, em “Só Rezo”.
Em entrevistas, Emicida se embrenha em outros assuntos, como a masculinidade tóxica: “Não é um lugar onde encontrei humanidade”. Esse aspecto está, para ele, intimamente ligado a saúde mental. Seu último sucesso, AmarElo, enfatiza muito esse assunto. A introdução do vídeo conta com um áudio-desabafo enviado de um amigo para ele, no auge de sua depressão (do amigo).
É por abordar questões tão pertinentes, como essa, que Emicida é, e continuará sendo, tão atual e tão necessário para a nossa sociedade. Precisamos falar sobre saúde mental, sobre desigualdades sociais, sobre masculinidade tóxica, sobre tudo isso, e Emicida está aí, para servir de intermédio para o discurso. Ele não retrata apenas mazelas materiais, mas também espirituais. Definindo sua religiosidade como um misto entre hinduísmo, candomblé e catolicismo popular, Emicida é, hoje, sinônimo de luta e sensibilidade artística.
Formado em Jornalismo pela Universidade da Região da Campanha, Willians Barbosa tem 26 anos, nascido e reside em Bagé. Escorpiano com ascendente em Peixes. Escritor procrastinador. Ocupa seu tempo com tudo que tenha a ver com cultura, desde livros e gibis até filmes, séries e música. Desde que iniciou a quarentena, vive em constante crise existencial.