Ano 08 nº 138/2020 – Da mesma moeda
Da mesma moeda
O ponteiro do relógio completa mais uma volta
E eu aqui
Remoendo passado e vivendo futuro que não chegou
Me acabando numa sensação que me é indispensável
Um cachorro de rua
Sem destino nem lar
Por vezes correndo no encalço de um ou outro – o chispam
Cachorro vagabundo, negro, delgado, sem beleza
Ninguém o quer
Então se aninha junto a um mendigo
Noite de verão
Anseia por água
Do outro lado da rua,
Garotos esvaziam garrafas de cidra
Num ritmo tão alucinante quanto suas conversas de meia-noite
As horas se arrastam
Ouço da minha cama a música bagaceira do bordel à frente
Pensamentos voam
Como pode alguém não saber viver?
De dia, correm
À noite, seguem sendo marionetes
Vidradas em serem diferentes
Manequins de fábrica, feitos sob grandes demandas
Todas iguais, a olhos nus
Eu, num ritual sagrado, penso em tirar a própria vida
Outros, num descompromisso sem fim, vivem como máquinas
Não há o que fazer
O odor do cigarro se espalha, as cinzas caem na coberta
O silêncio apavora
A mão então desfalece à beira do leito
O cão amado lambe os nós de seus dedos
Os entes lamentam sua juventude perdida
Comparecem à missa de sétimo dia e esquecem
Pintam as paredes do quarto sem vida – não querem saber de desgraça
Mas voltam ao trabalho na segunda e bebem na sexta
Trepam no puteiro e não pensam em mudar
Felizes, os garotos de roupas iguais enchem a cara
Um morre de cirrose, mas a vida tem que seguir
O cachorro, que acaba de tomar uma tunda, segue vivendo
Meu corpo desfalecido segue escarnecendo
Seguindo, os ditadores, sua fórmula certeira
Os artistas desistem de insistir