Ano 07 nº 069/2019 – Cordão ancestral
Por Alice Arruda
Estudante de Letras – Línguas Adicionais/UNIPAMPA
Eu sou uma pessoa entre mais de sessenta. Faço parte dessa máquina ancestral, me questionando se sou pelo menos uma engrenagem que gira ajudando a locomotiva funcionar. Posso dizer que vivo em um forte composto por vários pilares, erguido da resiliência particular de cada pilastra dessa fortaleza.
Se vou contar um pouco sobre algumas dessas rochas, talvez eu devesse começar pela que me apresentou ao mundo, entre várias mães, a minha. Forasteira, viajada que ao chegar perto da linha do final do mundo, encontrou o significado de lar. É aquela que ama e acolhe e é amada e acolhida. Virginiana cheia de neuras, quase perfeita.
À frente da minha casa, tem minha minha vó. Gênio de escorpiana, mas que fala alto como uma ariana. Mulher de várias crenças e religiões, que pode se dividir em mil dela quando precisa cuidar de alguém. Mãe de 4 filhos, 2 homens e 2 duas mulheres, mulheres essas que são minhas mães escolhidas pela mãe de ventre.
A mais velha nunca foi casada, no entanto pelos afilhados é muito amada. Filho nenhum pariu, mas é a quem todos recorrem ao colo gentil. A mais nova também é escorpiana, muito geniosa, raramente mansa. Filha branca de mãe preta, colocou no mundo duas meninas cor de leite que minha vó chama de netas.
A família é grande: tias, primas, netas, todas mulheres que vieram após a grande matriarca. A aquariana mais geniosa (até mais que eu), minha bisa. Mulher negra, filha de mãe indígena, deu origem a suas filhas negras, café com leite, que deram continuidade à essa família misturada e colorida.
Nesse extenso zodíaco, há muito o que contar ou sobre quem falar. Posso falar da tia avó de dois nomes. Libriana popular, artista, professora, graduada, que gosta de samba e uma gelada. Tem a tia “cuida-de-todos”, acho que todo esse acolho é coisa de canceriano. Posso falar da minha madrinha, a quem descobriu a maternidade cedo, mas nunca perdeu o brilho da jovem que vive acesa lá dentro.
A tia religiosa, a prima que faz salgado e a prima que faz doce, a tia que a pouco faleceu ou a madrinha que um dia adoeceu. Mulheres, da minha família, mas que poderiam fazer parte da sua, dentro dos seus estereótipos e jeitinho de mãe que esse senso comum nos faz crer. No entanto quem as conhece sabe que não existem iguais, cada uma exercendo o seu eu além da feminilidade pueril e maternal. Mulheres que, envoltas de um gigante fio umbilical, se entrelaçam nesse cordão ancestral, dentro de um ventre coletivo cada uma com sua particularidade construindo um forte plural.
Foto: Alice Arruda
Lupus Mulier
No fundo da prisão de carne
vive ela,
que sou eu.
Adormecida,
dopada
à espera da ressurreição
Vivo presa,
cansada
à procura de algo para me conectar,
pois enquanto ela dorme
sinto meu eu
desintegrar
O verde das árvores,
o azul do mar
me ensinam
que é possível respirar
O vermelho do sangue
que escorre por entre minhas pernas
me força a lembrar
que, na verdade,
meu corpo é meu lar
Se as incertezas das águas me apavoram
eu acho abrigo
na rainha do mar
e assim esqueço tudo que me faz afogar
Se o fogo me machuca
encontro meu lugar nas cinzas
transformando o interior chamuscado
em chama que não se apaga
Morro e renasço
na mesma vida
mas não na mesma existência.
Viver de ciclos
até que a prisão de carne
apodreça
em decadência .
Foto: Natan Velasque
*Texto de introdução da Prof. Dra. Fabiane Lazzaris: https://junipampa.info/colaboradores/feminismo-interseccional-dossie-para-o-junipampa/#.XdQktOhKjIU