Ano 13 Nº 13/2025 – Gagacabana: uma análise semiótica

Por: Willians Barbosa

Fonte: Lineup

Este texto propõe uma análise semiótica do show da cantora Lady Gaga, realizado em 3 de maio de 2025, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. A semiótica, em síntese, é a ciência que estuda os signos e os processos de significação. Para tal leitura, foram considerados elementos da mitologia pop, os efeitos conotativos de ritualidades e as narrativas simbólicas que compõem a visualidade do espetáculo.

Espetáculo histórico da maior estrela pop da atualidade em terras brasileiras. Não é hipérbole, são números: o show de Lady Gaga no Rio de Janeiro se tornou o maior evento musical feminino da história, ao juntar 2,1 milhões de pessoas nas areias de Copacabana. E ninguém melhor do que os brasileiros para acompanhar de perto esse momento, depois do cancelamento da performance da cantora no Rock In Rio em 2017 – uma espera de 8 anos, que foi coroada, de acordo com veículos da imprensa internacional, como ‘’o maior da sua carreira até agora’’.

Contando com faixas de seu novo álbum, Mayhem, e hits consagrados, o show teve uma estrutura gigante, alto impacto visual, várias trocas de figurinos, mensagens para os Little Monsters brasileiros e momentos arrebatadores. Foram 5 atos, com direção criativa da própria Gaga.

A Dama de Vermelho, conhecida também como A Dama de Branco ou A Dama da Meia Noite, é uma personagem lendária, de origem incerta. Em algumas versões da lenda, ela seduz homens solitários em bares. Em outras, ela surge em estradas pedindo carona. Quando o motorista percebe que está na frente do cemitério, ela diz ‘’é aqui que eu moro, não quer entrar?’’. Então ela desaparece e o sino da igreja toca avisando que é meia-noite.

Uma alma penada que, desencarnada de forma violenta, vaga pela noite e que traz consigo uma aura de tragédia e mistério. E que, n’O Manifesto do Caos, avisa Gaga: ‘’Cuidado! O caos no seu coração jamais cessará, até que você encontre outra maneira de canalizar o que procura’’.

Sem instrumental, só a sua voz: o texto do manifesto parece ser o coração de Gaga, pulsando no silêncio da noite, se preparando para o duelo. A sua oponente? ‘’A Senhora do Caos’’, sua contraparte interior.

Ato I: Do veludo e vício

A ópera gótica anuncia a chegada dela: Lady Gaga, de vestido vermelho e luvas pretas, vocalizando, com uma abordagem teatral, nada menos do que Bloody Mary – em uma versão que a consolida como um clássico moderno. Calcada na lenda urbana do espírito invocado em espelhos, a faixa traz uma Gaga atormentada, que busca pela liberdade pessoal e pela redenção.

É essa busca pela redenção, junto com o sacrifício da própria vida, que a coloca em movimento, com o prenúncio ‘’the category is: dance or die’’. Abracadabra é performada com Gaga comandando seres que, suplicantes, dançam nas grades da cauda do seu vestido.

Conjuração antiquíssima, ‘’Abracadabra’’ parece vir do hebraico, ‘’Ebrah k’ dabri’’ – em português, ‘’Eu crio enquanto falo’’. Durante a execução, Gaga desce para a cauda do seu vestido, descerra as grades e se precipita para o palco. Mestra nas artes, Gaga se despoja das vestes de Senhora do Caos e, trajada de verde e azul, corteja o Brasil.

Judas completa a primeira trilogia de canções, aqui com Gaga personificando uma Holy Fool, dominada pela paixão e pelo lado sombrio de sua personalidade. A dominatrix encarnada em Scheiße é uma das melhores Gagas do show. O auge da celebração identitária, em que a Mãe Monstro (Mother Monster) provoca com as cores: escrevendo e assinando, com pena vermelha, enquanto labaredas de fogo intensificam o momento.

O verde, que toma conta do palco em Garden of Eden, enquadra a Gaga na era Mayhem: uma rockstar visceral, com elementos de sua origem na indústria musical. Multi-instrumentista, ela arrisca alguns acordes com a guitarra e passos de dança com suas botas de cano alto. A apoteose da estrela, com Gaga extasiada, é seguida dos gritos de ‘’Gaga, eu te amo’’.

O duelo interior entre luz e trevas, que Gaga propõe em vários momentos de sua carreira e especialmente aqui, ganha novos contornos. A entrada de uma identidade trajada de branco, a quem Gaga recebe com um ‘’Oh, no! You? What are you doing here?!’’. O duelo entre os dois exércitos de dançarinos, comandados pelas duas facetas da artista, se desenrola ao som de Poker Face. A coreografia aqui é o centro do espetáculo, com menção ao O Olho Que Tudo Vê. O símbolo, também conhecido como Olho da Providência, simboliza o conhecimento divino sobre todas as coisas. 

Signo ausente, o silêncio comunica após a vitória das trevas. Para alguns, ele permite comunhão com o divino. E, assim, a Senhora do Caos sai de cena, procurando se encontrar ou fugir de si mesma. Experiência teatral de alta tensão, a vitória é seguida por uma sequência de atos, fortuitos ou ritualísticos. A remoção do corpo da ‘’Gaga da luz’’ pelo exército vencedor é seguida por um break dance com remix de Abracadabra.

Ato II: E ela caiu em um sonho gótico

O segundo ato abre com Gaga, de branco, deitada ao lado de um esqueleto e de caveiras. Ao som de Perfect Celebrity, temos a Gaga terrena. Sua indestrutibilidade é simbolizada pelas caveiras ganhando vida em Disease, uma das faixas mais viscerais de Mayhem. O embate que aqui, repentinamente, se trava é corporal e intenso, contra uma entidade de vermelho. A entidade, veloz como veneno que corre rapidamente pelas veias de Gaga, a destrói.

Paparazzi, com batidas trágicas, aborda temas sobre fama, destruição e redenção. Aqui, Gaga se reconstrói sob os holofotes. Sob a luz da Terra, a camaleoa do pop vai se desfazendo das muletas de metal, lembrança de sua destruição corpórea. É o ponto em que ela aterriza no momento presente – reconhecendo o público e, com os olhos marejados, fazendo para a câmera o gesto de garra dos Monstros.

Fonte: Lineup

O hasteamento da bandeira do Brasil e a entrada de um fã para traduzir sua carta dirigida aos brasileiros foi o momento mais Gaga possível. A genuinidade de suas palavras, misturada com a teatralidade com que esse momento foi conduzido, é a mais pura expressão de sua genialidade. Uma artista que, mesmo ao mostrar suas emoções, se conecta com o seu público, ancorada na performatividade que faz parte do show business.

‘’Nessa noite, estamos fazendo história. Mas ninguém faz história sozinha. Sem todos vocês, o povo incrível do Brasil, eu não teria esse momento. Obrigada por fazerem história comigo’’. Essas palavras são apenas algumas de Stefani Germanotta, a menina grata pelo amor e devoção de seus fãs. O frescor do momento é seguido pela mistura dos elementos latinos de Alejandro.

A diacronia presente na composição de The Beast, acompanhada por toques de baixo e bateria, mostra uma Gaga dançando com os demônios. O cenário com tons levemente avermelhados, a banda e os vocais sensuais encerram a partícula.

Ato III: O belo pesadelo que conhece seu nome

O punk toma conta do espetáculo com Gaga arriscando um solo de bateria, intercalado com o trash pop de Killah. A cantora, vestida com collant azul e preto, inflama em uma apresentação digna de diva pop de 2000’s. 

Outra mudança de look, mas a energia se mantém com Zombieboy, que apresenta uma Gaga marcial futurista dançando em meio a uma profusão de esqueletos. 

Em um universo onírico com emanações azuis, Lady Gaga canta e toca trecho de Die With A Smile, que, à altura do show, beirava a duzentos dias como a música mais reproduzida do mundo. O piano ornamentado com caveiras, à altura de nenhuma outra além de Gaga, remete a uma simbologia própria: não só da morte, mas também da transitoriedade da vida. Os esqueletos, e os crânios, são o que resta no fim de tudo.

How Bad Do U Want Me, por sua vez, foi performada com todos os dançarinos vestidos com a camisa da seleção brasileira, em homenagem ao país.

Ato IV: Despertá-la é perdê-la

Como Alice no País das Maravilhas, Gaga empreende uma busca constante pela identidade própria. Nesse ato, Gaga se mostra se libertando das amarras. Em Shadow of a Man, ela entrega vocais e dança. Com todos os figurinos pretos, ela expressa autenticidade.

Hino LGBTQ+, Born This Way é um chamado aos Monstros levantarem suas garras, com Gaga como porta-voz de toda a comunidade. A bateção sincronizada dos leques, o símbolo mais claro entre a plateia durante o evento, aqui cessou. O apetrecho deu espaço para o movimento orgânico das mãos, consonante com a significação do momento.

Blade of Grass canalizou a energia geral, com piano em uma ária e o brilho da tela de 2 milhões de celulares. Vemos Lady Gaga decantando, ao começar a perceber a magia instaurada naquelas quase duas horas.

Então ela parece decidir não voltar nunca mais para a superfície, preferindo mergulhar nas profundezas com Shallow. A canção vencedora do Oscar, que uniu diferentes gerações ao som de sua voz, mostra uma Gaga despida.

As interpelações entre essas últimas músicas do concerto foram uma constante. Gaga e os seus fãs compartilharam as emoções através de palavras e gestos. Vanish Into You foi entoada em uma espécie de fusão simbólica com o público. Não havia mais nada que separasse ídola e fãs. Ela desce para a grade da plateia enquanto canta a plenos pulmões, entrega a bandeira LGBT para a multidão e toma para si a bandeira brasileira.

Ato V: Ária eterna do coração monstro

Corvos enigmáticos fazem uma operação cirúrgica em Lady Gaga. Após isso, ela surge, com asas e garras gigantes, cantando o hino Bad Romance. Uma caveira assiste a tudo do alto centro, como símbolo da união dos Monstros. Os gestos de garra, a sincronicidade ballet/banda e o cântico hipnotizante da canção garantiram, por 5 minutos, o momento catártico. O mega show, encerrado aos gritos de ‘’Gaga’’ e ‘’Gaga, eu te amo’’, arrancaram lágrimas da artista.

Os fogos de artifício à beira-mar, provavelmente não esperados por Gaga, deram a devida dimensão do que acabara de acontecer: A Mãe Monstro conjurou e compartilhou com os Little Monsters a maior mágica até então de sua carreira.

Demoníaco e virginal. Satânico e casto. A dualidade entre luz e trevas é velha conhecida dos fãs de Lady Gaga, que sempre traz à sua arte elementos que desafiam convenções religiosas. O caos, então, foi traduzido. Entre a areia e o céu do palco, a artista surgiu em meio ao fogo, se desfez em água e ressurgiu com asas, consagrando uma epifania coletiva. Gaga e os seus Monstros reescreveram o mito – à beira do mundo.

Fonte: X

Referências

MELGUISO, J. Lady Gaga em Copacabana: veja o show da cantora em números. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/lady-gaga-em-copacabana-veja-o-show-da-cantora-em-numeros/>. Acesso em: 14 maio. 2025.

Willians Barbosa é jornalista formado pelo Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp), especialista em Artes pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel). Atualmente, é acadêmico de Letras pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e pós-graduando em Análise do Discurso Midiático (Faculeste).

Comentários
  1. silvia
  2. silvia

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