Ano 05 nº 007/2017 – 8 de março – Uma data política
Viviane de Vargas Geribone
Professora de Língua Portuguesa e Literatura, Mestra em Educação, dedicada às questões feministas e suas implicações pedagógicas. Também é integrante do Grupo de Estudos Linguagem e Currículo (GELC) Unipampa/Campus Bagé-RS.
Em homenagem a todas nós, mulheres, que buscamos nosso empoderamento através do estudo e da pesquisa, ampliando nossas competências intelectuais, compartilho minha leitura do livro Gênero, patriarcado, violência, de Heleieth Saffioti. A leitura deste livro é um bom combustível para nossas lutas diárias, além de contribuir para a ressignificação do dia 8 de março como data “política” e não pejorativamente “comemorativa”.
O livro Gênero, Patriarcado, Violência, de Heleieth Saffioti, pretende problematizar alguns conceitos, a partir do olhar da referida socióloga brasileira, notável estudiosa das temáticas feministas. Tais conceitos – como: gênero, patriarcado, poder, raça, etnia e a relação exploração-dominação –, conforme a autora desenvolve em seu texto, estão cobertos por uma série de paradoxos, que serão desvestidos ao longo da obra, destacando suas nuances político-ideológicas.
A leitura em pauta sugere a abertura de novas perspectivas para a compreensão da violência contra as mulheres. Esta tarefa se dá através da utilização de conceitos formulados pela autora ao longo de sua vida acadêmica, uma vez que os temas discutidos fazem parte do universo de pesquisas de Saffioti desde a década de 1980. De acordo com a autora, a violência sofrida pelas mulheres configura um problema social cuja análise está fundamentalmente ligada aos estudos de gênero, raça/etnia, classes sociais e patriarcado. A referida obra está dividida em quatro seções analíticas, remetendo-se, conforme salienta Saffioti (2004, p.09) “[…] a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenômenos sociais relativamente ocultos”, enfatizando a violência contra as mulheres, problemática presente em todos os eixos de reflexão do livro em questão.
Compreender os variados mecanismos de opressão, aos quais as mulheres têm sido submetidas ao longo da História, tem feito parte dos estudos das mais diversas áreas do conhecimento, destacando: a Saúde, os Direitos Humanos, as Ciências Sociais e a Educação. Por esta diversidade de estudos, que vêm sendo feitos acerca dos temas elencados neste livro, podemos notar que as tensões entre os pensamentos da autora são atravessadas pela pluralidade de saberes. Desse modo, a autora se manifesta através de um olhar marcadamente feminista, balizando-se por teorias do campo disciplinar no qual está inserida. Ao observarmos capítulos como, por exemplo, “A realidade nua e crua” e “A descoberta da área das perfumarias”, notamos que a socióloga trata de temas bem específicos, conceituando-os, em termos jurídicos e sociológicos; além disso, enfatiza os diversos tipos de violências (doméstica, de gênero, contra as mulheres, intrafamiliar, urbana) que, aos olhos da autora, ocorrem no Brasil sob a égide da permissividade social.
Saffioti (2004, p. 14) desenvolve uma breve análise do terreno político-econômico brasileiro e nos mostra que estes espaços são “[…] certamente, a maior e mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado”. Nesse sentido, para a referida autora, não podemos deixar de considerar a ordem patriarcal de gênero nas análises sobre a violência contra as mulheres. Embora, desde o início da leitura, a obra em questão nos leve a refletir que – mesmo com certa quantidade de novos conceitos, releituras e reinterpretações de teorias já conhecidas, além de alguma instabilidade característica do fazer feminista –, talvez ainda não seja possível identificarmos termos consensuais no panorama das lutas das correntes feministas.
Ao recorrer a referências fundamentais no campo dos Estudos Feministas e de Gênero como, por exemplo, Carole Pateman, Gayle Rubin, Joan Scott, apenas citando algumas autoras, Saffioti (2004) desenvolve uma escrita que circula entre apontamentos puramente coloquiais, passando por reflexões importantes e densas. Nesses casos, as análises da socióloga demandam uma leitura crítica, atentando para alguns conceitos que merecem destaque. Este é o caso do conceito de “poder”, formulado por Foucault, o qual está legitimado sob as influências de correntes do pensamento pós-moderno. Nesse sentido, Saffioti (2004, p.13) destaca que precisamos compreender “[…] o poder não como um objeto do qual se possa realizar uma definitiva apropriação, mas como algo que flui, que circula nas e pelas relações sociais”.
A autora também estabelece algumas discussões teóricas sobre os conceitos de gênero a partir de diferentes perspectivas. É importante destacar que os Estudos de Gênero, sob o enfoque natural e ideológico, introduziram as questões sobre gênero entendido como categoria analítica, salientando como é ilusória a neutralidade de valores tidos como “universais”. Em sua prática interdisciplinar, a socióloga relaciona – através de uma perspectiva “engendrada” – questões de raça, classe, etnia, além de contribuições de diferentes eixos epistemológicos como: a psicanálise, o marxismo e a antropologia, na tentativa de compreender a representação histórica, cultural e literária das mulheres, incluindo suas contribuições neste processo de legitimação.
Outra questão interessante a ser destacada nesta obra é o fato de que ela é resultado de reflexões sedimentadas em dados empíricos, dando destaque a pontos de referência com relação às sobreposições parciais, às especificidades e às diferenças entre as várias modalidades de violências existentes. Tais fenômenos, levantados por Saffioti (2004), não são tão raros quanto o senso comum apregoa. Além disso, consistem em alvo de crítica por parte da autora que, em diversos momentos da obra, assevera sobre o uso político de uma diferença construída a partir dos argumentos do determinismo biológico e em normatizações feitas com base em uma marca genital. Logo, conforme a referida autora, as pessoas são socializadas a fim de que se mantenha o pensamento andrógino, machista, classista e sexista, eminentemente estabelecido pelo patriarcado, entendido como um poder político – arranjado e legitimado pelo Estado, através da naturalização das diferenças sexuais.
Sobre a violência, assunto fundamental em grande parte das reflexões de Saffioti (2004), temos que considerar as sobreposições articuladas pela autora acerca dos conceitos e das especificidades de cada “fenômeno” – sua expressão para nomear a violência. Ao desnudar os fatos, realçando suas particularidades, a socióloga constrói quadros teóricos de referência com o objetivo de orientar o leitor. Desse modo, somos levadas a perceber as características dos diferentes contextos nos quais acontecem, principalmente, violências: contra a mulher, de gênero, doméstica, intrafamiliar, entre outras. Nessa perspectiva, está incorporada às análises de Saffioti (2004) a ocorrência do “femicídio”¹, que, conforme a autora destaca, equivale à feminização da palavra homicídio, configurando um fenômeno, infelizmente, bastante recorrente, principalmente nos tempos atuais.
Ainda fazendo referência à violência e à todas as consequências que surgem da sua ocorrência, Saffioti (2004) indica que, na sociedade patriarcal em que vivemos, há forte banalização da violência, visto que existe tolerância e, inclusive, certo incentivo da sociedade para que os homens possam “cumprir” sua virilidade, fundamentados na força/dominação, apoiados na organização social de gênero. Logo, se considerarmos estas questões, podemos afirmar que é “[…] normal e natural que homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violência” (SAFFIOTI, 2004, p.74). Seguindo este pressuposto, a autora ainda destaca que a ruptura dos diversos tipos de integridade – física, sexual, emocional, moral – estabelece a “[…] ordem social das bicadas” (SAFFIOTI, 2004, p.74), na qual a permissividade social que converte a agressividade masculina em agressão contra as mulheres não é um fator que prejudica apenas as vítimas, mas atinge também seus agressores e todos que convivem ou são forçados, por uma série de motivos, a suportar tal sujeição. É importante destacar que Saffioti (2004) faz uma observação importante no sentido de que a ruptura da integridade como critério de avaliação de um ato como violento ou não está situada no campo da individualidade e, por isso, cada mulher compreende de modo singular esse mecanismo de submissão aos homens. De acordo com a autora, apenas uma política de combate à violência, sobretudo a doméstica, que se articule e atue em rede, de modo a englobar diferentes áreas, será capaz de ter eficácia no combate à violência.
Além dessas considerações, é interessante mencionarmos que Saffioti (2004), desmascarando parte do processo de diferenciação sexuada, nas múltiplas configurações espaço-temporais, apresenta o caráter que produz e reitera imagens naturalizadas de mulheres e homens. Por esse olhar, consideramos a obra em análise uma referência de leitura para pessoas interessadas nas temáticas relacionadas às questões de gênero, violência, patriarcado e suas relações. Tal avaliação tem seu sentido legitimado uma vez que a literatura científica feminista tem sido constantemente encoberta ou ignorada. Nestas circunstâncias, este livro ressalta a necessidade de questionarmos os paradigmas científicos e a naturalização dos modos de relações sociais, que determinam o feminino e o masculino em uma escala de valores hierárquicos, com o fim de “desnaturalizar” construções materializadas no imaginário e nas representações sociais acerca das desigualdades que subsistem nas relações entre mulheres e homens.
Enfim, podemos afirmar que se trata de uma obra estimulante, cuja leitura precisa ser cuidadosa, visto que funda suas interpretações a partir do enfoque que compreende o gênero como uma representação que produz e reproduz diferenças através da classificação dos indivíduos pelo sexo. Nessa perspectiva, Gênero, Patriarcado, Violência traz conceitos já desenvolvidos pela autora em outros estudos, porém pode ser considerada uma referência bibliográfica para pessoas interessadas em estudos sobre gênero e violência, uma vez que contribui com importantes considerações acerca dos temas referidos, guiando o(a) leitor(a) para além das generalizações e do senso comum.
1- Em 9 de março de 2015, foi decretada e sancionada pela Presidenta da República, Dilma Rousseff, a lei 13.104/15. A nova lei alterou o código penal para incluir mais uma modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio: quando o crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência.São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.