Ano 13 Nº 12/2025 – O MENOR DOS MONSTROS
Por João Gabriel

“Quando os homens estão de barriga cheia, eles se alienam daqueles que os alimentam. Homens famintos são perigosos.”
João Gabriel Areas
Era uma vez, nas terras distantes, além das montanhas azuis, onde as névoas nunca se dissipavam e as florestas guardavam segredos antigos. Um rei temeroso pelo destino de seu império. Sentado em seu trono de mármore, ouvia rumores de traição sussurrados entre os corredores do palácio. Mas os traidores, dizia o conselheiro, não viriam de fora. Eles já estavam lá dentro.
— A traição não nasce do inimigo, mas do desejo insaciável daqueles que nos rodeiam — disse o velho sábio, cujos olhos viam além da carne. — Dentro de cada homem há um monstro adormecido. Mas um coração faminto sempre encontra um jeito de devorar o que deseja.
O rei, apreensivo, questionou:
— E como posso impedi-los? Devo matá-los?
O conselheiro balançou a cabeça, sombrio.
— Matar um monstro não o destrói, apenas o substitui. Para controlar uma fera, deve se forçá-la a enxergar sua própria natureza. Só então se saberá qual jaula usar.
Porém, antes que o rei se retirasse, o velho sábio o advertiu:
— Mesmo que conheça as vis feitiçarias, não deve subestimar as criaturas. O monstro certo na jaula certa, caso contrário, ele se libertará.
— Devo apenas prendê-los? — Perguntou o rei.
— Deve visitá-los a cada lua para que nunca os esqueça. Caso contrário, usarão isso para destroná-lo.
Assim, o rei arquitetou um plano. Com um frasco de poção em mãos, convocou seus três guerreiros mais leais: o Cavaleiro, o Arqueiro e o Escudeiro. Eles eram os pilares do reino, a muralha entre a coroa e o caos. Mas cada um carregava algo que nem mesmo o rei sabia nomear. O primeiro a ser chamado foi o Cavaleiro, o mais poderoso entre os três. Sua lâmina não conhecia piedade, e seu corpo era esculpido para a guerra. Ele não falava de honra, apenas de vitórias.
— Beba esta poção — ordenou o rei. — Mostre-me seu monstro. O Cavaleiro sorriu, confiante.
— Sou o mais forte de seus guerreiros, meu rei. Não há monstro que me domine.
E engoliu o líquido sem hesitação. Foi quando ele emergiu.
Do peito do Cavaleiro, como se fosse sua própria sombra, surgiu um monstro colossal, de garras como lâminas e um corpo coberto de pelos escuros, pulsantes como músculos prontos para despedaçar. Seus olhos eram braseiros de fúria, e sua boca escorria saliva como um lobo faminto. Ele olhou para o rei e rosnou, um som que tremia as muralhas.
— Finalmente. Finalmente, posso falar.
O rei, apesar de sua coragem, sentiu o peso daquela presença.
— És tu o traidor? — perguntou.
O monstro da espada inclinou a cabeça e sorriu, revelando presas longas e afiadas.
— Eu? Eu não traio. Eu conquisto. Eu esmago. Eu devoro. O que está sentado neste trono? Apenas um homem. Mas eu sou mais. Eu sou o desejo de rasgar carne, de ouvir ossos quebrando sob minhas mãos. Eu sou o que a guerra cria, e a paz tenta sufocar. Eu sou o verdadeiro governante de um império.
O Cavaleiro desesperado levou seus joelhos ao chão.
— Meu rei, o desejo da guerra me consome. Mas eu nunca o trairia.
O rei, com um gesto, ordenou que o aprisionassem.
— Levem-no à maior das jaulas. Que ele nunca escape.
Mas enquanto o arrastavam, o monstro apenas ria.
— Jaulas não contêm aquilo que nasceu para dominar, meu rei. Eu apenas espero.
O segundo a ser chamado foi o Arqueiro, ágil e letal. Seu olhar era frio como a lâmina de uma faca, e seu sorriso escondia segredos.
— Beba esta poção — ordenou o rei.
O Arqueiro ergueu a taça e riu.
— Que truque é este, meu rei? Quer testar minha lealdade?
— Quero ver o que você esconde – Disse o rei.
Ele bebeu.
E da escuridão, algo rastejou para fora de sua boca. Era uma criatura sinuosa, de pele lisa como óleo e olhos azuis e perspicazes. Seu corpo se retorcia como uma serpente, e sua voz era um sussurro de seda.
— Ah… finalmente, o ar fresco.
O rei franziu a testa.
— O que queres, monstro?
A criatura sorriu, afiada como uma flecha.
— Quero tudo o que não é meu. Quero o que não posso tocar. O ouro. O trono. O sangue. Mas acima de tudo… quero o que o outro não tem. O Cavaleiro é um tolo, quer guerra e massacre. Mas eu? Eu sou o silêncio antes da lâmina cortar a garganta. Sou a promessa falsa. Sou a sombra que desliza por trás dos reis. Eu sou a traição.
— Meu rei, o desejo do ouro me consome. Mas eu nunca o trairia.
O rei ordenou que o levassem para a segunda jaula.
— Que fique preso. Que nunca se liberte.
O monstro suspirou, teatral.
— Ah, meu rei… não são grades que seguram aqueles que sabem esperar.
O último a ser chamado foi o Escudeiro. Era grande, mas não agressivo. Seu escudo sempre protegera o rei, mas nunca atacara ninguém.
— Beba. Disse o rei.
O Escudeiro hesitou, mas obedeceu.
E de dentro dele saiu um monstro pequeno, de escamas viscosas e olhos vermelhos que cintilavam de astúcia. Ele não rugiu. Ele apenas observou.
O rei, cansado, perguntou:
— E tu, pequeno monstro? O que desejas?
O ser piscou, e então chorou. Lágrimas grossas escorriam de seus olhos, como se lamentasse sua própria existência.
— Desejo aquilo que nem o senhor terá, nobre rei.
O rei riu.
— Eu tenho tudo o que desejo, monstro tolo. Um ser chorão não é ameaça para ninguém.
E o trancou na menor das jaulas.
Conforme os anos se passaram, os monstros continuaram presos, longe dos corações daqueles que os seguravam. O rei os visitou a cada lua cheia, zombando de sua condição.
Mas o monstro do escudo aprendeu.
Com o tempo, seu corpo mudou. Suas escamas ficaram maleáveis. Ele se tornou fluido, moldável. E quando chegou a noite certa… Escapou.
O monstro da espada de joelhos implorou:
— Me liberte! Me liberte!
O monstro do Arco de joelhos implorou:
— Me liberte! Me liberte!
— Eu os libertarei, se jurarem não me destruir.
Os monstros juraram que dividiriam o reino como iguais. Mas nunca existiu honra entre ladrões e traidores, e o escudo sabia disso.
Mesmo assim libertou os outros.
— Vocês queriam o trono? A coroa? Eu não. Eu queria o que nenhum de vocês compreendia. Eu queria o que ninguém pode segurar – Disse o Escudo, com voz firme.
O monstro da espada rugiu:
— E o que é isso?
O pequeno monstro sorriu.
— O que tu desejas, escudo? – Perguntou a espada com olhar desconfiado.
— Eu queria aquilo que escorrega entre os dedos de reis e guerreiros – respondeu o Escudo – Queria aquilo que não pode ser domado. A liberdade que nunca pude alcançar, tomarei dele.
Eles devoraram a família real. Depois, devoraram o rei.
O monstro da espada ergueu-se sobre os destroços do reino, seu peito inflado pela vitória. O sangue do rei ainda escorria por suas presas, e os ossos quebrados do velho homem estalavam sob suas garras. Mas então, ele se virou para o monstro do arco, seu antigo aliado.
— Agora que não há mais um rei, só pode haver um de nós – Disse a Espada, com a voz carregada de ambição.
O monstro do arco recuou, os olhos arregalados.
— Você jurou que dividiríamos isso. Que teríamos o reino juntos.
O monstro da espada riu, com um som rouco e cruel, disse ao Arco.
— Um trono não é feito para dois.
Sem hesitação, ele avançou. O monstro do arco tentou se esquivar, mas não havia escapatória. A traição é rápida, mas a violência é inevitável. A espada rasgou sua carne, seus membros foram arrancados, sua voz se perdeu em gritos afogados pelo próprio sangue. Ele tentou lutar, mas traição sem vantagem é apenas fraqueza.
E a fraqueza nunca vence.
Quando o massacre terminou, o monstro da espada ergueu-se sobre os restos do arco, os dentes vermelhos, o peito arfando. E então, ele se virou para o último que restava. O monstro do escudo.
Por um momento, ambos se encararam. A lâmina e a defesa. O impulso e a paciência. O monstro da espada ergueu suas garras, pronto para mais um combate.
Mas o monstro do escudo apenas sorriu.
Ele não atacou. Não recuou. Apenas permaneceu ali, observando.
— Você não vai lutar? — rugiu a espada.
— Para quê? — respondeu o escudo. — Para tomar um trono que não será meu por muito tempo? Para segurar algo que outro monstro, como você, um dia tomará?
O monstro da espada rosnou, irritado.
— Então você foge?
O monstro do escudo riu.
— Eu entendo o que você não entende. A violência destrói, mas também se destrói. Você é tolo, espada. Acha que venceu. Mas amanhã ou no dia seguinte, outro monstro virá e fará com você o que você fez com o rei.
O monstro da espada hesitou. Por um momento, uma sombra de dúvida passou por seus olhos. Mas então, ele rosnou e se virou para o trono.
— Eu sou o mais forte. Se outro vier, que tente me tomar isso.
O monstro do escudo apenas observou enquanto a espada se sentava no trono manchado de sangue.
Ele não pegou a coroa. Não precisou. Porque a verdadeira liberdade não luta por poder. Ela observa aqueles que o querem se destruírem sozinhos.
O monstro da espada sentou-se no trono ensanguentado, sentindo o peso da coroa imaginária sobre sua cabeça. Ele havia vencido. O rei estava morto, o monstro do arco destroçado, e apenas o escudo, aquele menor e mais traiçoeiro, partira sem lutar. A vitória era dele.
Mas o silêncio do salão era sufocante.
Ele olhou ao redor, vendo os cadáveres espalhados, os ossos empilhados sobre o mármore frio. Nenhum súdito restara para aclamá-lo, nenhum inimigo para temer sua lâmina. O poder era dele, e, ainda assim, algo rastejava dentro de seu peito — algo que ele não entendia.
Foi então que se lembrou das palavras do escudo.
— A violência destrói, mas também se destrói.
O monstro da espada apertou os punhos. Não. Ele era forte. Ele era invencível. Se outro viesse, ele o despedaçaria, como fez com todos os outros.
Mas a tolice da espada não está em sua brutalidade. Está em sua crença de que sempre haverá algo para cortar, algo para dominar. A espada nunca aprende que todo monstro que se ergue para conquistar um trono está apenas marcando a própria sentença. Pois sempre, sempre, haverá outro monstro, uma lâmina mais afiada, um predador mais faminto.
E o escudo sabia disso. Ele sabia que o trono não é um prêmio, mas uma armadilha. Um convite para ser o próximo a cair.
E no fim, todos eram monstros. Sempre foram. Homens, feras, reis e guerreiros, todos alimentando seus próprios abismos. Mas há aqueles que conhecem seu monstro e aqueles que são devorados por ele.
A espada nunca percebe o que é.
Mas o escudo, aquele menor e mais perigoso, sabia que a única maneira de vencer… Era nunca jogar o jogo.
Lembre-se sempre, um monstro menor não significa menos perigo. Afinal, o menor dos monstros é o mais perigoso, assim como o menor dos homens se torna a pior ameaça. Não há desejo maior que a liberdade.
O texto não é sobre monstros, e sim sobre humanos.
Todas as pessoas carregam em si um potencial para destruir. Algumas ignoram e outras o escondem, porém, estão apenas se enganando.
O texto é uma reflexão de como você deve conhecer o seu mal, conhecer o seu monstro. Pois assim poderá achar uma jaula que o prenda. Na jaula certa ele não pode interferir, porém, se o ignorar quem acabará na jaula será você.

João Gabriel, 19 anos, é um jovem criador apaixonado por histórias. Divide seu tempo entre o trabalho, a escrita, os estudos em programação e a preparação para a Escola Naval. Também se dedica à arte digital, onde transforma ideias em imagens marcantes, explorando os limites entre imaginação e realidade.