Ano 09 nº 056/2021 – Nem tudo é sobre nós
Por Saulo Eich
É isso. Nem tudo é sobre nós. Parece um entendimento simples ou um aconselhamento grosseiro, mas eu diria que também é uma verdade necessária de ser dita e uma compreensão importante de se ter. Boa parte dos nossos conflitos com o outro dizem respeito a algum aspecto do outro que nos afeta e ativa nossas questões mais sensíveis. Então, se utilizarmos a nosso favor a ideia de que “nem tudo é sobre nós” poderíamos nos sentir, quem sabe, menos ameaçados, menos inseguros e menos rejeitados em nossas mais variadas relações.
Nos autossabotamos sempre que nos colocamos como fundamentais ao outro, a ponto de acharmos que todas as suas condutas e reações se relacionam conosco. “Maria visualizou e não respondeu e, na verdade, ela sempre faz isso. Demora pra responder e, quando responde, é econômica e seca nas palavras. É sempre um oi, ok, tá bom ou um emoji fazendo sinal de positivo”. Certamente, a pessoa que sente incômodo com a forma como Maria interage na rede social que elas usam pra se comunicar interpreta, não raras vezes, que Maria está pessoalmente incomodada com ela. E poderia ser? Sim. Mas, pra além do que supomos, existem outras possibilidades. E, às vezes, a razão de as coisas serem como são se encontra nesse grupo de outras possibilidades e não naquilo que imaginamos. E somos tão acostumados a ouvir a voz de nossas angústias sem questionar uma vírgula que, facilmente, chegamos à conclusão de que o problema somos nós. E, repito, às vezes sim, mas nem tudo é sobre nós.
Quando o outro rejeita algo em nós, ele está, na verdade, falando consigo mesmo. Está falando com a forma como ele, o outro, lida com elementos que encontra em mim. Não ser aceito por alguém por conta de nosso “modo de ser” pode falar sobre nós sim, e sobre comportamentos e reações equivocadas, que possivelmente necessitam de modificações; mas também pode falar sobre o outro, sobre suas projeções, sobre suas questões pessoais, sobre aspectos que, do lugar onde estamos, muitas vezes não são visíveis. Um cliente que recusa seu serviço profissional pode ser um cliente que busca um outro perfil de profissional, apenas isso. Não está definitivamente posto que você foi rejeitado por ser um profissional ruim. Até porque é sempre válido relembrar da básica ideia de que o que é bom para uma pessoa não é necessariamente bom para outra.
Quando estamos especialmente inseguros, tendemos a perceber as coisas de maneira ainda mais distorcida, sentindo rejeição em tudo e em todos. Se o namorado demora mais de 2 horas pra responder a mensagem, talvez tenha perdido o interesse ou esteja falando com outra pessoa. Jamais a possibilidade de ele estar dormindo, ou muito ocupado com o trabalho, ou com a faculdade vai ser uma hipótese a ser cogitada. E, assim, de pequenas em pequenas leituras distorcidas e inseguras da realidade, vamos reforçando a sensação de que o problema somos nós em todas as situações, lembrando de raríssimas vezes em que nem tudo foi sobre nós.
O modelo terapêutico cognitivo, nesse sentido, nos ensina a olhar pra vida com menos certezas deturpadas e com mais tranquilidade; a medida em que, antes de a insegurança instalada pelo medo da rejeição ser ativada, consigamos exercitar essa forma de olhar para as condutas e reações do outro sem nos colocar como a razão por ele ser e agir de determinada forma. Pois, se, por um lado, é frustrante constatar isso; por outro, é libertador assimilar que nem sempre o outro está olhando para nós, que nem sempre o outro está agindo a partir daquilo que nós despertamos nele. Às vezes (e muitas vezes, eu diria), não temos absolutamente nenhuma relação com a forma como as outras pessoas lidam conosco. Achar que tudo é sobre nós é pretensioso demais!
Um abraço e até o mês que vem!
Saulo Eich é psicólogo clínico infantil e adulto, de abordagem Cognitivo Comportamental, em Bagé/RS.