Ano 08 nº 039/2020 – Dias estranhamente normais / Saulo Eich
Talvez o maior desafio dessa quarentena seja o fato de sermos obrigados a nos reencontrarmos. A olharmos sem tergiversar pras nossas angústias, pra os nossos sonhos, fantasias e frustrações. Ao longo dessa já extensa quarentena, um relato se mostrou frequente na fala de alguns pacientes: o efeito da solidão e do vazio em dias de isolamento social.
Enquanto muitas pessoas administram bem seus momentos de desorganização da rotina e de ociosidade, outras sofrem de maneira potencializada. São os ansiosos, os deprimidos, os fóbicos, e os obsessivos compulsivos. São eles num cenário onde as pessoas são orientadas a ficarem em suas casas, sendo dispensadas temporariamente de seus empregos, onde as crianças param de ir a aula por tempo indeterminado, onde os bares e a noite já não podem mais ser convidativos, onde os lindos dias de sol e céu azul não são mais uma excelente razão pra tomar um chimarrão nas praças.
Passados quase dois meses do início da quarentena em decorrência do covid-19, começa a acontecer algo que ali atrás seria inusitado: as pessoas começam a entender essa condição de restrições e afastamento social como o natural. O pânico inicial parece começar a ser substituído por uma sensação de acostumar-se ao caos. Se ali atrás sair na rua de máscara era motivo que chamava a atenção das pessoas, hoje o estranhamento ocorre se a gente vê um indivíduo sem ela. Covid-19 é a pauta mais comum dos veículos de comunicação. Todos estão cansados de saber o que precisam fazer pra se protegerem. E é claro, que assim como na vida fora de uma situação atípica como essa, tá cheio de gente que foge às regras e ignora os cuidados a serem tomados. Mas é indiscutível que um fenômeno acontece aos nossos olhos de maneira simples: nós estamos encontrando um ponto de normalidade dentro do caos.
É o normal se configurando dentro da coisa mais improvável que poderia acontecer até então no ano, e nos últimos anos, sem considerar o cenário político, pois a sutileza cruel de um processo com todo jeito de golpe de estado e de uma posterior eleição absurdamente inacreditável daquele que não vamos nominar não entram nessa perspectiva de circunstâncias inesperadas que nos tomam de assalto, como essa pandemia fez. E, eu introduzi o viés político na minha fala porque, enquanto tento aqui expressar sobre a normalidade que percebo nascer no pedregulho da situação atual, inevitavelmente fiquei tendo flashs de incansáveis absurdos proferidos pelo Presidente da República, que, de tantos que foram e são ditos, já não nos causam mais tanto espanto. Ninguém mais espera nascer flores nessa terra infértil, então, o normal parece ser esse mesmo. Se espantar um pouco sim, às vezes mais e às vezes menos, depois lamentavelmente rir, fazer graça e até meme, e por fim, dizer pra os amigos que “nem sei mais porque ainda me surpreendo com isso”.
A questão mais relevante a se considerar diante desse efeito de normalidade no meio do caos, que explanei aqui, talvez diga respeito a lucidez necessária de entendermos o que essa dinâmica nos mostra é de que forma podemos validar isso a nosso favor.
Se por um lado, é precioso vislumbrarmos essa possibilidade de tornar suportável o que em dado momento possa parecer o contrário, por outro, é providencial termos plena consciência de que adquirirmos condições de lidarmos de maneira mais branda com condições difíceis não significa afrouxar nossa percepção responsável sobre elas. Isso seria conformismo. E se tem algo do qual não devemos ter nenhuma dúvida é de que as coisas não são permanentes. O normal mais saudável virá depois dessa ideia de normalidade encontrada em meio ao caos de um governo desastroso ou de uma pandemia como a que estamos vivenciando.
Por enquanto, adaptando Beto Guedes e sua Janela Lateral, a gente vai falando, suportando e superando essas cores mórbidas, esses homens sórdidos e esse temporal.
Até mais!