Ano 13 Nº 20/2025 O que nos trouxe até aqui

Por: Mauricio Nunes e Vitória Vasconcellos

Fonte: Autores (2025)

Memória é terra. Às vezes seca, ferida, coberta de silêncio. Às vezes fértil, pronta para fazer brotar aquilo que quiseram enterrar. A memória do povo negro no Brasil não está apenas nos livros de história — está nos corpos que caminham, nas mãos que cozinham, nas vozes que cantam. É uma memória que sobrevive apesar da violência, que insiste mesmo quando esquecida.

“A minha história não está nos arquivos. Ela está no corpo da minha avó, no cheiro do terreiro, na cadência do tambor”, escreveu Conceição Evaristo (2017), e é nessa trilha que seguimos. Cada gesto cotidiano — do modo de trançar o cabelo ao cuidado com os mais velhos — é um fio de memória que resiste ao esquecimento. Essa resistência nem sempre é barulhenta. Às vezes ela sussurra. Mas nunca desaparece.

Somos descendentes de um povo que teve que aprender a lembrar sem papel, sem monumento, sem estátua. Tivemos que inventar maneiras de guardar nossas histórias em rezas, provérbios, comidas e músicas. Quando dizem que o Brasil é um país sem memória, o que estão realmente dizendo é que a memória negra, indígena, camponesa não foi autorizada a ocupar o centro. Mas ela existe. E como ensina Abdias do Nascimento (1980), “a memória cultural afro-brasileira é um instrumento de libertação”.

Nos ensinaram que a ancestralidade é um passado longínquo, mas ela é presença. É ferramenta para pensar o futuro. A ancestralidade não é só a imagem do navio negreiro, é também a imagem da roda de capoeira, do samba de roda, da ciranda, do sorriso diante da sobrevivência. É o que nos permite continuar sonhando mesmo diante da injustiça. É o que nos lembra que não começamos ontem — e que ninguém começa do zero.

A ancestralidade é um conceito complexo e de difícil delimitação em uma única definição. Para compreendê-la melhor, pode-se recorrer a Oliveira (2007), que explora suas múltiplas dimensões e destaca que: “A ancestralidade é uma categoria de relação, ligação, inclusão, diversidade, unidade e encantamento. Ela, ao mesmo tempo, é enigma-ancestralidade e revelação-profecia. Indica e esconde caminhos. A ancestralidade é um modo de interpretar e produzir a realidade. Ela é um instrumento ideológico (conjunto de representações) que serve para construções políticas e sociais” (p. 257).  Para Lopes (2004, p. 59), ancestral remete a antepassado e “para o africano, o ancestral é importante e venerado porque deixa uma herança espiritual sobre a Terra, contribuindo assim para a evolução da comunidade ao longo da sua existência”.

A universidade, por vezes, tenta nos dizer que só é válido o que foi teorizado em sala de aula, o que tem método, citação, bibliografia em norma. Mas já dizia Lélia Gonzalez (2006): “a oralidade é a base da nossa tradição intelectual.” Quantas avós foram apagadas dos currículos? Quantos mestres de saber foram ignorados nos bancos acadêmicos por não se expressarem na norma culta ou por não ocuparem um título formal?

Hoje, quando vemos jovens negros e negras ocupando a universidade, publicando, pesquisando, formando redes, não é apenas conquista individual. É continuidade. É o eco dos que vieram antes. É a prova de que a ancestralidade encontrou caminhos para resistir, mesmo quando tudo conspirava contra.

“O que me move é o que me liga”, escreveu Cuti (2007). O que nos trouxe até aqui foi o vínculo, a força da memória que atravessa o tempo. É preciso saber de onde viemos para entender onde estamos. E mais ainda: para decidir para onde queremos ir.

O tempo da ancestralidade não é linear. Ele se curva. Ele conecta passado, presente e o que ainda está por vir. E é nesse tempo espiralado que seguimos em marcha, conscientes de que lembrar é, também, um ato de criação. E que não há liberdade possível sem memória.

Ao ler Daniel Munduruku (2015), que descende dos povos originários deste país, compreendi que a ancestralidade não se limita apenas ao passado, mas é um ciclo contínuo que conecta todos nós enquanto seres humanos. Refletir sobre aqueles que vieram antes de mim e abriram caminho para que eu estivesse aqui é essencial, mas também devo considerar aqueles que virão depois, pois eu também serei ancestralidade dos meus filhos e netos, dando continuidade a essa trajetória.

“Na verdade a gente aprende que não existem coisas insignificantes e que todos os seres vivos fazem parte da grande teia da vida, da qual não somos donos, mas apenas um de seus fios” (Munduruku, 2015, p. 16)

Seguimos, então, não apenas com os pés no presente, mas com os olhos voltados para o que ainda precisa ser lembrado, corrigido, refeito. Porque memória não é só aquilo que passou — é também o que escolhemos não deixar passar em branco. Em tempos de apagamentos sutis e apagões escancarados, lembrar é uma forma de existir com firmeza. O que nos trouxe até aqui foi a força de quem não teve medo de olhar para trás. E o que nos levará adiante será a coragem de transformar a lembrança em horizonte.

Autores:

Mauricio Nunes Macedo de Carvalho – Professor no Bacharelado em Engenharia da Produção (UNIPAMPA); Graduado em Engenharia Elétrica (UFSM), Mestre em Engenharia da Produção (UFSM); Doutor em Engenharia da Produção e Sistemas (UNISINOS); Membro do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), Coordenador do NEABI Oliveira Silveira (UNIPAMPA), Coordenador da Comissão de Avaliação Docente de Estágios Probatórios (UNIPAMPA). Coordenador do Comitê de Apoio Técnico  Equidade (CAT-Equidade UNIPAMPA). Coordenador de Tutoria do Curso de Extensão, Formação para docência e gestão para educação das relações étnico-raciais e quilombolas (UAB-UNIPAMPA). 

Vitória Vasconcellos da Luz  – Egressa do curso Técnico Integrado em Informática no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Riograndense, do curso de Tecnologia em Análise e Desenvolvimento de Sistemas ambos no IFSul, Câmpus Bagé. Especialista em informática da educação e educação especial pela FACIBA. Mestre em ensino pela Universidade Federal do Pampa. Realiza pesquisas nas áreas de ações afirmativas, inclusão e acessibilidade. É voluntária na Associação Bajeense de Pessoas com Deficiência (ABADEF). Coordenadora Adjunta do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI – Oliveira Silveira) e do Grupo de Pesquisas INCLUSIVE ambos da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) do Campus Bagé. É técnica administrativa em educação na Unipampa onde atuou na Diretoria de Tecnologia da Informação e Comunicação – DTIC e, atualmente, é Assessora de Tecnologia, Comunicação e Acessibilidade na Pró-Reitoria de Comunidades, Ações Afirmativas, Diversidade e Inclusão – PROCADI.

Referências:
CUTI (Luiz Silva). Negroesia. São Paulo: Nankin Editorial, 2007.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flávia Rios; Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Perspectiva, 1980.
MUNDURUKU, Daniel. O banquete dos deuses: conversa sobre a origem e a cultura brasileira. Global Editora e Distribuidora Ltda, 2015.
OLIVEIRA, Eduardo. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007.

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