Ano 08 nº 057/2020 – Adoção: do processo de habilitação à subjetividade do afeto / Coluna Saulo Eich

image1Por Saulo Eich

 

Neste mês de maio, que no dia 25 assinala o dia Nacional da Adoção, achei oportuno trazer alguma consideração sobre essa forma tão linda e desafiadora de ser família. Ao longo de 3 anos, através de avaliações psicológicas para o fórum de Bagé, acompanhei dezenas de casais ou pretendentes individuais a serem habilitados para adotarem uma criança ou adolescente, e acompanhei também adotantes e adotados em seus períodos de adaptação. E, de longe, a constatação mais nítida que pude inicialmente fazer diante desse contexto é a de que todas essas crianças ou adolescentes chegam, em algum grau, emocionalmente feridos e acuados a suas novas famílias. E está posto aí o primeiro grande desafio dessas novas relações entre pais (mães) e filhos (as): o de polir uma necessidade de amar e ser amado que chega muitas vezes na mais bruta e resistente forma.

Mas obviamente nem só de amor se constroem essas novas relações, e isso é fundamental considerar. Ao passo em que entendemos que o amor existe ou está em processo de cultivo, outros sentimentos também emergem. A raiva, a frustração, a decepção. É impossível não construir idealizações sobre como um pai ou uma mãe quer que se estabeleça a dinâmica de suas relações com seus filhos e filhas, independentemente da natureza dessa filiação, se biológica ou não. E, no caso de filhos(as) destituídos de suas famílias originais e com históricos variados de institucionalização em abrigos, ou de reincidência do “abandono” por famílias adotantes que não se adaptam a essa nova configuração familiar, ou até mesmo em razão da resistência em se adaptar por parte do menor adotando, também é impossível dizer que não chegarão acuados, com medo, com sentimento de raiva. A caixinha emocional de lembranças denominada “pais/família” certamente vem cheia desses sentimentos. Ou não. Mas entender essa possibilidade é trabalhar um olhar de compreensão do desafio que é a adoção. Um desafio, sem dúvida, recompensador.

Por outro lado, outro desafio no cenário da adoção é a forma como se dá o processo de habilitação para tal. Com prazos curtos para a realização das avaliações, o judiciário impõe uma celeridade que, em se tratando do que está sendo avaliado, se torna um grande desafio para o avaliador também. Não há dúvidas de que uma avaliação psicológica para um processo de adoção deveria ser mais minuciosa do que é, mais aprofundada do que é, num período de acompanhamento avaliativo maior do que aquele que é possível, mas, na impossibilidade disso, ainda assim, realiza-se um procedimento conforme a demanda exige, atendendo todas as orientações técnicas e éticas. A questão fundamental aqui é, mensurando a complexidade do que se está observando e avaliando, o maior aprofundamento possível é essencial. Além disso, há uma ausência de preparação básica desses futuros pais e mães na busca por serem habilitados. Quando falo isso, refiro a questões tão simples e tão determinantes como entender a seara emocional que o processo envolve. Na ausência desse preparo regulamentado como parte do processo de habilitação,  os grupos de apoio à adoção suprem parte dessa demanda. Em várias cidades do país emergem grupos no intuito de acolher quem anseia adotar, quem está no meio do processo e também aqueles que já estão como seus filhos e filhas em suas famílias. Aqueles que já são família. Aqui em Bagé, não é diferente, pois existe o GAAB, o Grupo de Apoio à Adoção de Bagé.

A adoção, para além do caráter burocrático que a distância, parece ter e dar percepção afetiva que temos quando ouvimos repetidamente que ela é “um ato de amor”, é mais que isso: é uma decisão amorosa sim, é um processo mais ou menos lento, mais ou menos burocrático em sua trajetória judiciária sim, mas para além disso, é uma experiência de ressignificação. Para os pais e mães, é o ressignificado do papel materno e paterno, a partir do momento em que a adoção ensina que a maternidade e a paternidade estão no afeto e não na condição biológica desse vínculo. Para a criança ou adolescente adotados(as), é o ressignificado do que é ser e ter uma família. E sabemos que ressignificar aquilo que sentimos e percebemos nunca é uma tarefa simples em nenhum contexto. E, eu arrisco dizer, debruçado na minha percepção muito pessoal, que, a forma mais linda de ressignificar sonhos, afetos e papéis talvez seja, justamente, através da adoção. 

Até o mês que vem!

 

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