Ano 13 Nº 55/2025 Educação, Intelectualidade e Memória Negra: Reflexões a partir de João Thiago do Patrocínio
Josiane Navarrina Milano Muller

A história da educação no Brasil é atravessada por desigualdades estruturais que atingem, de forma persistente, a população negra. A herança escravocrata, as políticas de embranquecimento e a exclusão social moldaram as oportunidades educacionais e os caminhos do reconhecimento intelectual dos descendentes de africanos. Nesse contexto, compreender o papel dos intelectuais negros e refletir sobre trajetórias como a de João Thiago do Patrocínio, médico e jornalista de Bagé/RS, significa revisitar uma história de silenciamentos, mas também de resistência e afirmação cultural.
Guimarães (2004) aponta que a integração dos negros na sociedade brasileira deu-se, historicamente, pelo ideal do embranquecimento, entendido como o processo de assimilação dos indivíduos negros aos padrões e valores das elites brancas. Essa lógica, ao mesmo tempo que permitia certa ascensão social, exigia o apagamento das identidades negras, tornando o reconhecimento de intelectuais afrodescendentes um processo complexo e, muitas vezes, contraditório. O intelectual negro que conquistava espaço em instituições de prestígio precisava lidar com o dilema entre a inserção e a negação de sua negritude
Macedo (2013) amplia essa reflexão ao considerar o trabalho dos intelectuais negros como fundamental para o reconhecimento e a valorização das expressões culturais e das memórias do povo afro-brasileiro. Segundo o autor, suas produções abriram caminhos para que as histórias e as análises sobre as populações negras fossem legitimadas nos meios acadêmicos e políticos. Essa presença, entretanto, nem sempre se deu de maneira pacífica: a produção intelectual negra precisou disputar espaços de fala e desafiar paradigmas eurocêntricos consolidados.
A discussão sobre o que significa ser um intelectual negro exige também um olhar sobre o próprio conceito de “negro”. King (2010), citado por Oliveira (2013), mostra que o termo possui sentidos distintos conforme o contexto cultural. Nas línguas europeias, carrega conotações negativas — como em “lista negra” ou “ovelha negra” —, enquanto em línguas africanas expressa vitalidade e força, como nas expressões Wayne bibi (“sol negro”, o sol em seu auge) ou Hari bibi (“água negra”, a mais pura). Essa diferença revela que a negritude, longe de ser apenas uma categoria física, constitui um campo simbólico, político e cultural que reflete modos diversos de compreender o mundo.
Para Oliveira (2013), ser negro é, além de uma condição étnico-racial, uma marca histórica e política. O reconhecimento das africanidades presentes no Brasil implica compreender que a identidade negra é construída também pela relação com a ancestralidade e pela resistência frente à tentativa de apagamento cultural. Assim, pensar a educação e a produção intelectual negra é pensar o enfrentamento às estruturas que, historicamente, marginalizaram esses sujeitos do campo da ciência, da cultura e da história.
Após a abolição, novas formas de afirmação negra emergiram no espaço público. Silva (2018) destaca que os clubes e a imprensa negra tornaram-se instrumentos fundamentais para a expressão política e cultural dos afrodescendentes. Esses espaços possibilitaram o fortalecimento de ideais, tradições e narrativas que se opunham ao discurso hegemônico da inferiorização racial. Conforme Santos (2009), a imprensa negra foi uma ferramenta de resistência e de conscientização, denunciando o racismo e reivindicando a cidadania plena. Nos periódicos, o debate sobre a questão racial era constante, e o estigma da cor preta era compreendido como herança direta da escravidão e reflexo da ignorância social do período.
Nesse cenário, a atuação de João Thiago do Patrocínio como articulista e visto como homem intelectual assume importância singular. Filho de uma época marcada pela exclusão, ele alcançou visibilidade por meio de sua atuação jornalística e médica, inserindo-se em espaços de prestígio e deixando sua marca na memória local. Sua trajetória, embora não explicitamente vinculada às causas negras, revela o desafio vivido por muitos intelectuais afrodescendentes: conquistar reconhecimento em uma sociedade que associava o saber e o prestígio à branquitude.
Mesmo décadas após seu falecimento, a memória de Patrocínio permaneceu viva na cidade de Bagé, que homenageou o intelectual ao nomear uma escola municipal com seu nome. Esse gesto, ainda que simbólico, expressa um processo de reparação e revalorização de figuras que, por muito tempo, foram invisibilizadas na história oficial. Como observa Pereira (2016), o século XIX foi marcado pela construção da imagem de heróis nacionais — majoritariamente brancos —, enquanto muitos outros sujeitos, sobretudo negros, foram silenciados ou esquecidos. Esse esquecimento não é casual: ele está profundamente relacionado às práticas eugenistas e à tentativa de manter um ideal de nação centrado na branquitude.
Ao refletir sobre o legado de João Thiago do Patrocínio, surge uma questão central: como nomear aqueles que, embora negros, não produziram diretamente sobre a negritude? Essa pergunta revela a complexidade do conceito de intelectual negro, que não se limita à temática abordada em suas obras, mas envolve também sua trajetória, seu lugar de fala e as condições históricas em que sua produção se deu. Patrocínio, assim como outros intelectuais afrodescendentes de seu tempo, representa o esforço de afirmação em meio a um sistema que valorizava o saber apenas quando dissociado da cor da pele.
Faces de João Thiago do Patrocínio

Fonte: Muller (2025)
Pensar a educação e o fazer intelectual negro no Brasil é, portanto, reconhecer a pluralidade de experiências e as formas diversas de resistência que marcaram a história da população afrodescendente. É compreender que cada sujeito negro que adentrou o mundo das letras, das ciências e da cultura contribuiu, direta ou indiretamente, para ampliar o campo de possibilidades da identidade negra. A figura de João Thiago do Patrocínio, nesse sentido, é um convite à reflexão sobre os modos de presença e de reconhecimento dos intelectuais negros, sobre os silêncios impostos pela história e sobre a urgência de reconstruir narrativas que contemplem todas as vozes que ajudaram a formar o Brasil.
REFERÊNCIAS
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. “Intelectuais negros e formas de integração nacional”. Janela para a história, Estudos Avançados, Maringá, n. 18, abr., 2004.
MACÊDO, Marluce de Lima. Intelectuais Negros, Memória e Diálogos para uma
Educação Antirracista: uma leitura de Abdias do Nascimento e Edison Carneiro. 305 f. Tese – Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2013.
MULLER, Josiane Navarrina Milano. João Thiago do Patrocinio: um intelectual em Bagé (1893-1936). 111 f. Dissertação – Programa de Pós-graduação em Ensino da Universidade Federal do Pampa. Bagé, 2025.
OLIVEIRA, Evaldo Ribeiro. Negro intelectual, intelectual negro ou negro-intelectual: considerações do processo de constituir-se negro-intelectual. 2013. 205 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2013.
PEREIRA, Waldeir Reis. Invisibilidade negra na educação: análises com base na experiência de uma professora de uma escola pública de Juiz de Fora/MG. 2016. 200 f. Dissertação – Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2016.
SANTOS, José Antônio dos. “Intelectuais negros e imprensa no Rio Grande do Sul: uma contribuição ao pensamento social brasileiro”. In: SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos. RS Negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
SILVA, Tiago Rosa da. Sujeitos, projetos e lutas políticas: um olhar sobre a imprensa negra em Bagé/RS no Pós-abolição (1913-1952). Aedos, Porto Alegre, v.10, n. 22, p.327-346, ago., 2018.
Josiane Navarrina Milano Muller é professora na Rede Municipal de Ensino de Bagé/RS, pedagoga (URCAMP/ 2013), especialista em Direito Educacional e Gestão Escolar (FAVENI/ 2019) e Gestão do Trabalho Pedagógico (FAVENI/ 2025), Mestra em Ensino (UNIPAMPA/ 2025), graduanda em História UAB (UNIPAMPA/São Borja), membra do PHERA (Grupo de Pesquisa em História da Educação, Repositórios Digitais e Acervos Históricos) e do NEABI Oliveira Silveira.