Ano 13 Nº 48/2025 Lanceiros Negros: Memória, Traição, Liberdade e Resistência Negra

Por: Ana Gabriely dos Santos Dias e Arthur Teixeira Ernesto

Na madrugada de 14 de novembro de 1844, o silêncio dos campos de Porongos foi rompido pelo estrondo da traição feita pelas forças imperiais. Homens negros, que carregavam lanças e esperanças foram surpreendidos em seu acampamento. Estes homens eram os Lanceiros Negros, combatentes que haviam se alistado na Revolução Farroupilha sob a promessa de liberdade. A morte os encontrou de forma cruel, e a promessa, nunca cumprida, dissolveu-se no sangue derramado.

O massacre dos Lanceiros Negros ocorrido no Cerro dos Porongos, situado no município de Pinheiro Machado, representa um dos episódios mais simbólicos da Guerra dos Farrapos, evidenciando não apenas a brutalidade do conflito, mas também as profundas questões étnico-raciais que marcaram a história do Rio Grande do Sul. Segundo os dados históricos, mais de cem cavalarianos negros foram brutalmente assassinados. Já os que sobreviveram por conseguirem fugir para quilombos vizinhos ou para Uruguai, acabaram sendo capturados e entregues À corte do Rio de Janeiro, no qual foram novamente submetidos à escravidão por mais de quarenta anos até o “fim da escravidão”, quando foi assinando a Lei Àurea em 1888. Porém, sabemos que mesmo com o fim da escravidão, muitos negros e negras continuaram na mesmo condição de subalternos/as, pois o governo não preparou e nem ofereceu nenhum tipo de subsídio para amparar ou amenizar a vida da população negra daquela época.

Como aponta Ribeiro (2024) “ o apagamento dos Lanceiros Negros na história tradicional do Rio Grande do Sul é evidente, incluindo nas produções culturais […]” (Ribeiro, 2024, p.15). Essa invisibilidade histórica revela como a narrativa dominante favoreceu a memória de determinados grupos, enquanto os negros, que arriscavam suas vidas pela causa, foram silenciados. Silva (2014) reforça essa análise ao destacar que a participação dos Lanceiros Negros foi marcada pela instrumentalização de seus corpos que após cumprirem o seu papel, eram descartados.

Além disso, Silva (2024) ressalta que a construção da memória do massacre dos Porongos enfatizou a bravura dos heróis gaúchos, muitas vezes à custa do reconhecimento da participação dos negros, perpetuando uma narrativa excludente. A análise evidencia que o massacre dos porongos não é apenas um episódio militar, mas também um símbolo das tensões raciais e sociais que marcaram a região, refletindo a marginalização histórica do povo negro.

O hino Rio-Grandense, símbolo da identidade gaúcha, inclui o trecho:

“Mas não basta, pra ser livre

Ser forte, aguerrido e bravo

Povo que não tem virtude

Acaba por ser escravo”

Esses versos exaltam coragem, força e virtude como pré-requisitos para a liberdade. Entretanto ao confrontarmos essa mensagem com a realidade dos Lanceiros Negros, surge uma contradição gritante, embora tenham sido fortes, aguerridos e corajosos, a sua liberdade lhes foi negada, e muitos acabaram mortos no Cerro dos Porongos. A letra do hino, ao enaltecer a virtude como condição para a liberdade, não contempla a exclusão racial e a traição sofrida pelos negros na guerra, demonstrando como a memória oficial seleciona quais heroís merecem ser lembrados.

O hino, quando analisado criticamente, nos convida a revisitar nossas tradições e a reescrever a memória coletiva. O verso citado não pode ser compreendido apenas como ideais abstratos, mas, ele precisa ser refletido à luz da história real, que inclui traições, apagamento de identidade, exclusão racial e sacrifício injustamente ignorado. A memória dos Lanceiros Negros, deve ser resgatada e incorporada à narrativa o hino, transformar a celebração da bravura em reconhecimento de todos aqueles que lutaram, mostrando que a verdadeira liberdade só é alcançada quando todos têm voz e dignidade.

Atualmente está sendo gravado um filme intitulado “Porongos”, espera-se que a obra cinematográfica reforce a história e a importância dos Lanceiros Negros. As gravações estão acontecendo em municípios do Rio Grande do Sul, entre eles Caçapava e Bagé. Para visualizar o que o texto representa trouxemos imagens dos bastidores, gravados em Bagé.

Fonte/arquivo pessoal de: Richar Conceição

Referências:

BBC BRASIL. Por que o Brasil não tem um memorial nacional da escravidão. BBC News Brasil, 16 dez. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55236674

CARVALHO, Ana Paula Comin de. O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas, configurações de identidades e relações interétnicas no Sul do Brasil. Sociedade e Cultura, v. 8, n. 2, p. 143-152, jul./dez. 2005. Disponível em: Vista do O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas, configurações de identidades e relações interétnicas no Sul do Brasil

RIBEIRO, Vitor Gabriel Coelho. “Entre sarjetas: lanceiros negros na Guerra de Farrapos (1836-1844).” (2024).   Disponível em: SEI/UFU – 5638261 – Ata de Defesa – Pós-Graduação

SILVA, Joice Nara Rosa. Da ficção à realidade: a história (re) contada em Netto perde sua alma. 2014. Disponível em: JoiceNara.pdf

SILVA, Shana. Uma Proposta De Educação Para As Relações Étnico-Raciais A Partir Das Comemorações Do 20 De Setembro. Saberes em Foco Revista da SMED NH, v. 7, n. 1, p. 15-27, 2024. Disponível em: Vista do UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS A PARTIR DAS COMEMORAÇÕES DO 20 DE SETEMBRO

SINOTTI, Kárita Gill; KONTZ, Leonardo Betemps; JÚNIOR, Odilon Leston. A Revolução Farroupilha: o massacre de cerro dos Porongos. Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, v. 27, 2015. Disponívem em: https://www.eumed.net/rev/cccss/2015/01/porongos.zip

Ana Gabriely dos Santos Dias graduada do curso de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pampa (Campus Bagé – RS), atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Línguas (PPGEL) da Unipampa Campus Bagé/RS. Membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígenas Oliveira Silveira (NEABI – Oliveira Silveira) e também do Núcleo de Estudos em Inclusão (NEI).  Professora de Português da rede Pública do município de Lavras do Sul – RS.

Arthur Teixeira Ernesto é formado no curso de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pampa – Campus Bagé/RS. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Línguas (PPGEL) – Mestrado Profissional em Ensino de Línguas (MPEL) pela Universidade Federal do Pampa – Unipampa Campus Bagé/RS. Membro/pesquisador no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas Oliveira Silveira – Neabi Oliveira Silveira. Atua como professor de Língua Portuguesa e de Literatura no curso de Ensino Médio Regular e EJA na escola Escola Estadual Visconde do Rio Branco – Poli,  Canoas/RS.

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