Ano 13 Nº 31/2025 Dossiê – A Escrita de Memorial Escolar/Acadêmico de alunos/as de Engenharia no componente curricular Produção Acadêmico-Científica

Por Prof. Dr. Adriano de Souza

Ideologias de linguagem são crenças, sentimentos e concepções sobre a estrutura e o uso da linguagem usados para indexicalizar tais usos aos interesses políticos e econômicos de grupos específicos (Kroskrity, 2010, p. 192¹). Nessa perspectiva, a escrita acadêmica é uma ideologia de linguagem, porque reforça a crença na padronização monolíngue e abstrata da comunicação verbal e, ao fazê-lo, estabelece um paradigma de correção e de valor que orienta e chancela os usos de linguagem.


Um exemplo disso é a crença de que a comunicação acadêmico-científica escrita deve, via de regra, ser construída de forma impessoal, isto é, optando-se por estratégias de ocultação do sujeito do discurso, seja pela voz passiva (as amostras foram misturadas), seja pela terceira pessoa (objetiva-se com este trabalho). No plano ideológico, essa forma de construção do discurso representa tão somente a manutenção de (ou a filiação a) uma concepção positivista de fazer científico, pela qual o objeto de pesquisa é separado do/a pesquisador/a pelas leis da racionalidade instrumental, e a linguagem deve buscar reproduzir essa cisão entre objeto e sujeito (Patias; Hohendorff, 2019).


Quando o/a estudante está no início da vida acadêmica, via de regra, ele/a ainda não tem uma participação efetiva na iniciação científica que lhe possibilite reunir e sistematizar achados de pesquisa para comunicá-los a um auditório acadêmico interessado. Esse é um dos motivos pelos quais a linguagem acadêmica se apresenta ao estudante de forma bastante cifrada, abstrata e muitas vezes estranha, daí que, no mais das vezes, o/a estudante acabe optando por generalizações do tipo “não posso usar a primeira pessoa”, visto que há, nessa entrada no campo acadêmico, um processo difícil de negociação identitária (Carvalho; Schlatter, 2022).


Não raro, neste cenário, ensinar produção textual para o campo acadêmico-científico transforma-se num trabalho de instrumentalizar o/a estudante com orientações sobre partes da estrutura de gêneros que ele/a não conhece, não usou, não leu e, portanto, não tem muito interesse a respeito. E quando trabalhamos com ingressantes de cursos de Engenharia, Ciências e Tecnologia, fica ainda mais evidente o resultado de uma cultura disciplinar que separa as pessoas que “gostam de ler e escrever” das que
“gostam de fazer cálculos”, as que são “boas em português” das que são “boas em matemática”, as que “vão mal” em português das que “vão mal em matemática” e por aí vai. Separadas – e entre “iguais”-, essas pessoas vão tentando lidar com os seus vazios, suas carências e suas valências.


Daí que, em minha experiência com o ensino de produção acadêmico-científica para estudantes iniciantes em Engenharia, tenho buscado trabalhar de forma alternativa a essa forma mencionada (a forma que busca a instrumentalização e a instrução). Não quer dizer que essa procura pessoal por uma outra pedagogia do letramento acadêmico revele uma solução para todos os problemas; tampouco quer dizer que ela se revele melhor ou mais produtiva. Apenas – e é o que esse dossiê vai tentar mostrar – por meio dessa procura, temos visto nascer autores/as que usam – e com muita propriedade e desenvoltura – a primeira pessoa para contar sua trajetória escolar, acadêmica e profissional.


Estou falando, portanto, da experiência com a escrita do memorial escolar/acadêmico, que, segundo Ada Brasileiro (2021, p. 171-172), é um texto autobiográfico que “deve ser escrito sob a forma de um relato histórico, analítico e crítico, que dê conta dos fatos e acontecimentos constitutivos da trajetória acadêmico-profissional de seu autor, de tal modo que o leitor possa ter uma informação completa e precisa do itinerário percorrido. Deve dar conta também de uma avaliação de todas as etapas, expressando o que cada momento significou, bem como as contribuições ou perdas que representou”.


Em nossa recente experiência, no primeiro semestre de 2025, combinamos com a turma que o memorial serviria para o/a estudante/a contar as suas experiências mais relevantes e determinantes para o seu ingresso na universidade. Aí ele poderia incluir a vida escolar e familiar, a escolha pelo curso, a experiência com apresentação de trabalhos e com a iniciação científica etc. Por se tratar de um texto autobiográfico, em grande parte narrativo e expositivo, o/a autor/a deveria fazer o exercício de usar a primeira pessoa, o que gerou desconforto e estranhamento, que foram se dissipando na medida em que os/as estudantes foram organizando o seu próprio texto e fazendo a leitura de outros memoriais acadêmicos.

Compõem, então, este dossiê três trabalhos dessa experiência: os textos de
Christian de Vargas Jardim (Engenharia da Computação); de João Victor da Rosa
Schervensquy
(Engenharia da Computação) e de Giovana Luiz Saggiomo (Engenharia
Química). Neles o/a leitor/a encontrará belíssimas reflexões sobre o papel da educação
escolar em parceria com a universidade:

“Mas algo que foi decisivo para mim foi quando o PIBID fez um projeto na escola que eu estudava. Na ocasião, eu desenvolvi o projeto de uma roda gigante com palitos de picolé e motor funcional, tendo orientação da minha professora de matemática Taís Rodrigues Saldanha, que foi uma grande inspiração para mim.” (Giovana Luiz Saggiomo).

O/a leitora também encontrará as inocentes (e talvez, por isso, as melhores) memórias de infância, como esta do João Victor da Rosa Schervensquy: “Aos 7 anos, queria ser lixeiro, achava incrível ver os coletores pulando do caminhão, correndo e se pendurando”. E como isso foi impactando as transformações da infância para a adolescência e a vida adulta, isto é, o amadurecimento desse sujeito: “Uma das experiências mais legais desse período foi dar aulas particulares de matemática para colegas com dificuldades. Descobri que ensinar era uma das melhores formas de aprender. Era muito divertido ver alguém entendendo um conceito difícil após minha explicação, isso me mostrou que talvez eu tivesse talento para a docência, mesmo que nunca tenha sido o meu plano principal.”

O/a leitor também vai conhecer as vicissitudes da escolha profissional, como nesse trecho do memorial do Christian de Vargas Jardim, em que ele nos conta suas dúvidas cruéis sobre a escolha entre Engenharia e Letras (!?): “Embora eu não tenha decidido por um curso específico, defini três opções de interesse: Engenharia de Software, Letras e Ciências Contábeis. Hoje percebo que essa variedade reflete a indecisão que ainda existia em mim, mas cada escolha tinha um motivo: a paixão por lógica e tecnologia motivava a Engenharia de Software; o gosto pelo ensino e pela partilha de conhecimento apontava para Letras; e o interesse por matemática e economia me levava a considerar Ciências Contábeis”.


Enfim, em cada texto, muitos saberes revelados. Cada um a seu modo, eles compõem um universo sensível e reflexivo e, por isso, autoral. Com a palavra nossos/as futuros/as engenheiros.

¹No original: “beliefs, feelings, and conceptions about language structure and use which often index the political economic interests of individual speakers, ethnic and other interest groups, and nation-states” (Kroskrity, 2010, p. 192, em tradução própria).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BRASILEIRO, Ada Magaly Matias. Como produzir textos acadêmicos e científicos.
São Paulo: Contexto, 2021.


CARVALHO, S. DA C.; SCHLATTER, M. Repertórios indígenas, voz e agência na escrita
de relatórios de pesquisa de mestrado. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 61, n. 3,
p. 712–732, set. 2022.


KROSKRITY, Paul V. Language Ideologies: Evolving Perspectives. In Language Use and
Society. IN: JASPERS, J. (ed.) Handbook of Pragmatics Highlights.
Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, pp. 192-211.2010.


PATIAS, N. D.; VON HOHENDORFF, J. Critérios de Qualidade para artigos de pesquisa
qualitativa. Psicologia em Estudo, 24. 2019.

Adriano de Souza é professor do Curso de Letras da Unipampa, campus Bagé, mestre e doutor em Letras, nas áreas de Estudos Literários (UFSM) e Linguística Aplicada (UFRGS) respectivamente. Trabalha com formação de professores de português e ministra componentes na graduação e pós-graduação nas áreas de Estudos de Letramento; Linguística Aplicada; Produção Textual.

Este texto faz parte de um dossiê. Leia o conteúdo na integra:
Texto 2: Ano 13 Nº 33/2025 Dossiê – A Escrita de Memorial Escolar/Acadêmico de Christian de Vargas Jardim

Texto 3: Ano 13 Nº 36/2025 A Escrita de Memorial Escolar/Acadêmico de João Victor Da Rosa Schervensquy 

Texto 4: Ano 13 Nº 40/2025 A Escrita de Memorial Escolar/Acadêmico de Giovana Saggiomo

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