Ano 13 Nº 26/2025 – Xica Manicongo que destrave nossa língua!
Por: Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet
Fonte: https://grupogaydabahia.com.br/o-retrato-falado-de-xica-manicongo/
Dizem que a nossa sociedade nasceu de um desejo na costa de Pindorama.
Que os brancos desceram de suas caravelas observando a nudez dos povos originários e se “espantaram” com os atributos daqueles que caminhavam sem pudor de suas “vergonhas”. Com a boca salivando e as partes do corpo pulsando, eles desceram tentando convencer de sua apropriação com espelhos e adornos, materiais de uma terra longínqua que relembra as aventuras de 100 anos de solidão de Gabriel Garcia Marquez. Estimulados pela sua ideologia cristã, e agora pela visão afastada de suas autoridades paroquiais, o Livro Sagrado parecia uma revelia. O “Grande Irmão” observador e reinante dos céus parecia não enxergar além das Palmeiras que ele mesmo havia criado. Longe de aproveitar a putridez de seus navios, seus tripulantes sentiram um arrepio em sua pele alva, intrigados pelas práticas sodomitas que presenciaram, menos com espanto do que com curiosidade. Porém, não reconhecem o desejo como aproveitamento e destino de criação, mas como violência, medo e pecado, àquilo que se mistura com a vontade e decai nas cachoeiras do martírio.
Aproveitaram, isso é certo. Estupraram não só mulheres, como homens indígenas, extirparam os dois-espíritos 1 dos corpos que os habitavam, mataram povos e subjugaram a tenebrosidade dos pecados, mas não sem aproveitarem do gozo da dominância: o da criação do “Outro”.
Por intento da história, as práticas abusivas e dominantes dos portugueses ultrapassaram seu tempo e respaldam além das fronteiras do espaço. Com a intensificação do tráfico negreiro no Brasil Colonial, com a estruturação dos campos produtivos que usavam da mão de obra superexplorada de povos africanos, e da lavagem cerebral feita a guerreiros da antiga Pindorama, o Branco nasceu já com seu contraponto Negro e Indígena. O que normalmente a historiografia tende a apagar é que não foram só as estruturas econômicas e as hierarquias raciais que surgiram nessa extirpação, mas também a construção de uma orientação sexual dominante e suas formas de organização exclusivistas no modelo de família branca e burguesa, reinante principalmente a partir do século XVIII: o heterocentrismo 2 .
Numa cidade do Extremo Sul do Brasil, o quilombo urbano de Bagé, se me permitem resistências, a prova branca ainda permanece um obstáculo crescente às populações negras e, em especial, LGBTQIAPN+. Apesar da realização da Primeira Conferência Municipal dos Direitos das Pessoas LGBTQIAPN+ do
município, houve ainda intentos de apagamento na história que nós escrevemos no cotidiano. Como experiência própria, dei uma entrevista de aproximadamente três minutos, onde não baixava a cabeça para os comentários lgbtfóbicos nas publicações das mídias burguesas da cidade.
A pergunta soava como um direito à resposta: “Qual a sua visão sobre os comentários negativos e preconceituosos em relação a realização da Conferência?”. Além da surpresa de ouvir uma travesti socióloga, a mesma aqui a disse “não há relevância nenhuma a violência que se apresenta em comentários em redes sociais; um pequeno dado revela isso tudo: não tivemos um homem cis
hétero e branco inscrito na participação do evento, ou seja, há a reprodução de uma história passada nessas críticas. Na minha visão, não se impõe a nós trazer a reflexão sobre esses homens que reclamam da nossa voz e dignidade, que é o que estamos buscando conquistar aqui”.
Ao me referir a ausência desses indivíduos ali, não possuía tempo de falar que eles não eram invisíveis. Portanto, salientei que a procura desses mesmos homens, principalmente relacionada as travestis pretas e pardas, estão no desejo de dominação nas esquinas e nas Zonas de Prostituição. Claro, a entrevista foi cortada e o que se manteve foi uma fala de mais ou menos 7 segundos onde eu “aprovava”, enquanto representante da sociedade civil, a realização da Conferência pelo Poder Público.
1 Expressão dos povos originários na qual o indivíduo se apresenta como homem-
mulher/mulher-mulher/mulher-homem, ou seja, um compartilhamento de um mesmo corpo
para duas instâncias diferentes. Faz parte da cosmovisão de determinados povos e se tem como
expressividade de gênero na modernidade, o que não possui o mesmo significado para estes
povos.
2 Forma de organização de parentesco que pressupõe a heterossexualidade compulsiva e rege a
sexualidade das pessoas a fim de ordenar uma formação sócio-cultural. Na sociedade moderna,
ela funciona como a família clássica burguesa, ou tradicional brasileira, para nós.
Nas análises das relações de poder, e também da história de construção do movimento LGBTQIAPN+, houve sempre a disputa interna do movimento. As travestis negras estadunidenses como Marsha P. Johnson & Stormé DeLarveire foram pioneiras na construção do que hoje conhecemos como contestação a história heterocêntrica das nossas existências, justamente por se imporem no evento da Revolta de Stonewall 3 , em 1969 e não aceitarem a violência policial de sua época, visto que além da barreira do gênero e da sexualidade como mulheres, ainda eram LGBTQIAPN+ e negras. Vale destaque também a figura da caribenha e estadunidense lésbica Áudre Lorde, na qual usou seus escritos para interseccionar e questionar o que era ser uma mulher negra e lésbica na sociedade norte-americana.
No Brasil, a parada é outra. Além de obviamente se inspirarem nos movimentos de acolá, as figuras aqui nunca tiveram um apogeu de levante tal qual em Stonewall. O movimento LGBTQIAPN+ é marcado pelo isolacionismo, mas também não significa que não existiram grupos organizados, tais quais: o Grupo Gay da Bahia (1980) e o Grupo de Afirmação Homossexual – SOMOS- (1978), por exemplo.
A repressão era enorme e as resistências não tornaram a inexistir. Ao contrário da história que domina, a nossa história dominada expõe um fracasso que é nosso jeito queer de ser, nos colocamos no caldeirão de Exú que nos ajuda a montar a nossa encruzilhada de autenticidade e de luta. Ela pressiona contra o nosso peito o formigamento da violência, o medo estatístico da vida, a impossibilidade da banalização da violência, ela é cotidiana, e as chances aumentativas da morte que percorre a cada esquina. Memórias a Jullyane Alexsandra Fernandes Marcial, morta e esquartejada sem nenhum pudor em nossa cidade, desrespeitada frente a dignidade de um dos nossos corpos. Xica Manicongo, primeira travesti registrada da nossa história, angolana trazida ao Brasil na época colonial, relembra as mordaças da voz. Madame Satã, provocando nos bares do Rio de Janeiro e fazendo questionar as normas do gênero aos homens que tomavam biritas no descanso de suas famílias tradicionais. Linn da Quebrada, que gritou no reality show do Big Brother Brasil “Não sou homem, nem sou mulher, sou travesti!”, ecoando com seu “Ela” tatuado na testa e escrevendo versos como “Deu meia-noite, era quase meio dia; Xica Manicongo que destrave sua língua” e “Sua língua é uma faca; Faço dela o meu perfume; Sacrifico o meu sangue; Transiciono no negrume”, cantando e poetizando a sua voz dissidente e nos ensinando pela linguagem do corpo e transcender a nossa possibilidade de ser.
3 Levante Estadunidense que aconteceu em Nova Iorque em 1969 na qual policiais buscaram fechar
um bar Stonewall Inn e impedir a circulação e o lazer da população LGBTQIAPN + no local. Esse
impedimento foi respondido com manifestações e pedradas por parte da população LGBTQIAPN+.
Esse texto é um grito e um respiro, assim como toda experiência que se diz e se percebe dissidente na cis-hetero-norma. Não pretendi escrever uma história negra e LGBTQIAPN+ do Brasil, nem poderia tomar esse esforço como meu, mas utilizar a minha voz como porta de entrada a certas reflexões que Manicongo desenrolou e se ancestralizou em mim. Brincar com tesão de branco é reparação histórica, reorientar as nossas relações sexuais é organizar socialmente uma formação histórica violenta, construir coletivamente as encruzilhadas da realidade é potência única de seres autenticamente machucados.
Que possamos abraçar o desejo e não temê-lo, esse é um dos passos para não repetir a história branca.

Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet, é travesti, parda, poeta, pesquisadora, escritora e bacharel em Sociologia pelo Centro Universitário Internacionhal (UNINTER) e licencianda em Sociologia pela mesma. Faz parte do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) desde 2023, foi eleita delegada na Primeira Conferência Municipal dos Direitos das Pessoas LGBTQIAPN+ do município de Bagé-RS; também participa do coletivo DSG (Diversidade, sexualidade e gênero) e atua na Organização da Parada da Diversidade de Bagé).
