Ano 13 Nº 21/2025 – Cheia
Por Ana Paula Ramos Medeiros

Junto com a água, vêm a angústia,
a dúvida, o medo, a aflição.
A mesma água que dá vida
também desagua desespero.
Quando falta, inquieta.
Quando transborda, apavora.
Assim como quase tudo na vida,
a água, se vem demais,
nos arrasta para dentro da dor.
A rua onde a infância morava
carrega agora silêncio e lama.
As paredes, caladas,
desabam memórias
num choro que o rio não quis conter.
O armário virou abrigo de ratos.
A cama, pedaço de um naufrágio.
Mas a alma, essa, não se molha fácil,
se agarra ao barro e reergue.
Chegam braços de todo canto,
doações, mantas, pão.
A dor escorre pelas calçadas,
mas também escorre compaixão.
Na fila, ninguém pergunta nome,
nem bairro, nem religião.
Porque a enchente é igualadora:
tira tudo, menos o coração.
E é no rosto de quem perdeu
que mora o Brasil esquecido.
Só lembram quando as águas gritam
e os alarmes acordam o descuido.
É preciso mais do que lamento:
é ação, verdade e rede.
Reconstruir exige concreto,
mas também exige gente.
E quando a água for embora,
quando o barro secar devagar,
que fique viva a memória:
não é tragédia, é repetição.
Não é só cheia, é negligência.
É o país afundado na omissão.
Ana Paula Ramos Medeiros é professora de Língua Portuguesa e autora apaixonada pela escrita literária. Formada em Letras pela Unipampa, dedica-se a transformar sentimentos e reflexões em palavras, através de poemas, crônicas e textos literários.