Ano 12 Nº 108/2024 O Papel dos Professores Voluntários em Cursinhos Populares: contribuições para a Democratização do Ensino a partir de um projeto de extensão

Por: Juliane Davila e Paiva

Este relato tem o objetivo de compartilhar minha experiência como professora voluntária de língua portuguesa no Cursinho Popular de Uruguaiana (CPU), curso voltado para a preparação para a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ofertado de forma gratuita aos alunos de escolas públicas de Uruguaiana, Rio Grande do Sul, em parceria com o campus local da Universidade Federal do Pampa (Unipampa).

O cursinho pode ser considerado como uma importante ação que visa oportunizar o acesso ao Ensino Superior por aquele estudante que não possui condições de custear um curso preparatório particular e que deseja uma formação para além das aulas regulares da Educação Básica, objetivando uma complementação entre os conteúdos já estudados e os que são priorizados nas provas do Enem. 

Além disso, a ação tem papel fundamental na democratização do acesso à Instituições de Educação Superior (IES) pelo aluno oriundo da escola pública estadual, uma vez que estes estudantes apresentam menor índice de ingresso às IES quando comparados aos estudantes de redes privadas ou até mesmo quando contrastados com aqueles advindos da Educação Profissional segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) (Brasil, 2023).

A questão da democratização do acesso ao Ensino Superior ainda merece consideração visto que hoje é um tema central nas discussões sobre igualdade de oportunidades e justiça social. Nos últimos anos, o Brasil tem avançado nesse sentido com políticas públicas voltadas para ampliar o acesso de estudantes de diferentes origens sociais e econômicas às universidades. O Sistema de Seleção Unificada (SiSU), as cotas raciais e sociais, bem como os programas de bolsas de estudo, a exemplo do Prouni e do FIES, são iniciativas que buscam reduzir as desigualdades históricas no acesso à educação superior (Veras; Silva, 2020). 

Essas políticas, ao oferecerem oportunidades para estudantes de classes populares, ajudam a transformar a composição das universidades, promovendo maior diversidade e inclusão. No entanto, apesar dos avanços, ainda existem desafios a serem enfrentados, como a necessidade de melhorias na infraestrutura das universidades públicas, o aumento da permanência dos alunos no ensino superior e a redução das barreiras financeiras que ainda limitam o acesso de muitos jovens. Portanto, a democratização do ingresso ao Ensino Superior é um processo contínuo, que exige não apenas a preparação para entrada nessas instituições como também a criação de condições para que os estudantes possam concluir seus cursos com qualidade.

Ademais, cumpre salientar que o CPU é uma atividade curricular de extensão promovida pelo programa Unipampa Cidadã que visa integrar a comunidade acadêmica com a comunidade escolar da Educação Básica oportunizando troca de saberes, aprendizados e experiências conforme prevê o Artigo 5º da Instrução Normativa nº 18 de 05 de agosto de 2021 da universidade (doravante IN nº 18 de 2021) (Unipampa, 2021). 

As ações de extensão das universidades públicas desempenham um papel crucial na promoção do acesso aos cursos superiores, especialmente ao aproximar a academia das realidades sociais e culturais das comunidades externas. Essas iniciativas, que incluem cursos, oficinas, projetos de pesquisa aplicada e ações de capacitação, visam levar o conhecimento produzido nas universidades para além de seus muros, contribuindo para a formação de cidadãos mais críticos e informados. Além disso, as atividades de extensão muitas vezes atuam como uma porta de entrada para o ensino superior, oferecendo oportunidades de aprendizado, a exemplo da atuação do CPU, para pessoas que, de outra forma, poderiam não ter acesso a essas experiências.

Atualmente, isto é, em 2024, o curso está em sua segunda edição, é supervisionado pela Professora Doutora Ana Paula Pesarico, docente do curso de Medicina e contabiliza 34 alunos participantes (a maioria do curso de Medicina) que se dividem em professores voluntários e monitores de sala de aula. 

A instituição pública que abriga o CPU — exigência prevista no Art. 4º da IN nº 18 de 2021 — é a Escola Estadual de Ensino Médio Marechal Cândido Rondon, localizada na região central da cidade, com fácil acesso para pedestres e por transporte particular ou público e contabiliza aproximadamente 800 alunos matriculados nos três turnos de funcionamento da escola (manhã, tarde e noite). O curso é aberto para os alunos de escolas públicas da cidade, as aulas ocorrem semanalmente de quarta a sexta-feira à noite, cada período tem duração de 45 minutos, das 18h45 às 22h e até o momento não possui limitação de vagas ofertadas.

Conforme mencionado anteriormente, o curso visa a preparação para  prova do Enem, que é dividida em quatro provas objetivas e uma redação, aplicadas em dois dias com intervalo de uma semana entre as provas. No primeiro dia, as provas são de Linguagens e Códigos e Ciências Humanas, além da redação. Já em seu segundo dia, as provas são de Ciências da Natureza e Matemática. 

Pensando na organização das provas do referido certame e na tentativa de articular os professores voluntários ao conjunto de disciplinas que compõem o CPU, a distribuição das matérias ficou estabelecida da seguinte forma: na área de Ciências da Natureza, são oferecidas Física, Química e Biologia; na área de Ciências Humanas, Sociologia, Filosofia, História e Geografia; e, na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Língua Portuguesa (doravante LP) e Literatura, seguidas de Redação e por último a Matemática que faz parte da área denominada Matemática e suas Tecnologias. 

Neste relato, apresento apenas as atividades desenvolvidas até o momento em LP porque é a disciplina na qual concentro minha atuação como professora voluntária. 

A carga horária estabelecida para a disciplina foi de 65 h, portanto, neste momento, ainda estou desenvolvendo minhas atividades com a turma. As aulas de LP iniciaram em 18 de abril e se estenderão até a semana de realização do ENEM. Dentro das 65h estão incluídas as horas-atividade bem como as horas-aulas.

No tocante aos conteúdos, como temos autonomia sobre as disciplinas, organizei os temas que têm sido recorrentes na prova e que de maneira geral se apresentam a cada edição da prova focando em leitura, escrita e interpretação textual. Infelizmente, temos pouco tempo de horas-aula o que reduz e limita a construção de conteúdos programáticos. Por esta razão, optei por deixar de fora atividades com a oralidade, exceto práticas de leitura em voz alta que foram realizadas durante as aulas. 

Selecionei, então, aqueles conteúdos que entendi mais pertinentes para o curto tempo de curso, quais sejam: Elementos da Comunicação, Funções da Linguagem, Tipologia textual, Gêneros Textuais, Variação Linguística, Conotação e Denotação, Formação de Palavras, Ortografia e Coesão Textual. 

Uma curiosidade que vale a pena mencionar aqui é que os alunos preferem aulas guiadas por slides, o que é possível de realizar na escola, pois há um auditório com espaço amplo, equipado com um bom projetor e caixa de som. A justificativa apresentada pelos alunos para o uso de slides se dá pelo cansaço de ter aulas no contraturno, alegando que “estariam cansados para copiar o conteúdo”.  

De forma geral, os alunos são bem participativos e colaboram na realização de atividades, fazem perguntas, expõem suas ideias, dúvidas e relatam suas expectativas para os dias de prova. 

O desafio que enfrentei foi no tocante à leitura e sua prática, pois alguns alunos relataram que não tem o costume de ler e que perdem o foco e a concentração rapidamente. Por esta razão, selecionei alguns textos que já foram objeto de provas anteriores para exemplificar, incentivar e praticar a leitura com os alunos. 

Aqui, é oportuno mencionar o conceito de professor reflexivo, conforme apontado por Fagundes (2016) tendo em vista a ideia de que o docente deve ser capaz de refletir criticamente sobre sua prática, suas escolhas pedagógicas e o impacto de seu trabalho no processo de ensino-aprendizagem. A autora destaca que o professor reflexivo não se limita a aplicar conteúdos, mas busca constantemente aprimorar suas estratégias, adaptá-las às necessidades de seus alunos e problematizar as condições que envolvem o ensino, como a dinâmica da sala de aula e os desafios da educação.

Nesse sentido, procurei investigar quais gêneros textuais eram do interesse dos alunos e quais não eram, buscando promover uma prática de leitura centrada nos gostos, mas também focando em superar as dificuldades encontradas em outros gêneros considerando que minha atuação deveria ser a de uma professora adaptável, que reconhece as limitações do seu contexto e busca alternativas para garantir a aprendizagem. A reflexão sobre este papel de educadora vai ao encontro do perfil de professor reflexivo descrito por Fagundes (2016).

Além disso, o trabalho no cursinho popular exige uma constante reavaliação das práticas pedagógicas e o uso de estratégias diferenciadas, dado que os estudantes oriundos de escolas públicas ou de contextos de vulnerabilidade social podem ter uma formação inicial mais fragilizada. Assim, o professor voluntário no cursinho popular não apenas ensina, mas também reflete sobre as melhores formas de promover saberes, o que envolve a criação de soluções criativas e o acompanhamento contínuo do progresso dos alunos. Essa dinâmica reflete, portanto, a essência do professor reflexivo, que busca aprimorar constantemente sua prática para melhor atender às necessidades de seus alunos.

Por fim, destaco que a experiência de integrar o CPU tem grande relevância para a minha trajetória profissional, pois representa a minha primeira atuação como professora, mesmo que de forma voluntária, desde a graduação em Letras Português, pela Unipampa, no ano de 2023. Pessoalmente, é um prazer retornar à escola pública, onde estudei durante a Educação Básica, e poder contribuir para a formação de jovens que aspiram ao ingresso no ensino superior.

Referências:
BRASIL. Ministério da Educação (MEC); Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). MEC e INEP divulgam resultado do Censo da Educação Superior 2023. Ministério da Educação, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/censo-da-educacao-superior/mec-e-inep-divulgam-resultado-do-censo-superior-2023#:~:text=Houve%20mais%20de%204%2C9,%25%20(1.679.590) Acesso em: 12 nov. 2024.

FAGUNDES, Tatiana Bezerra. Os conceitos de professor pesquisador e professor reflexivo: perspectivas do trabalho docente. Revista Brasileira de Educação, v. 24, n. 78, p. 125-142, jan./mar. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/RmXYydFLRBqmvYtK5vNGVCq/?format=pdf Acesso em: 25 nov. 2024. 

NERY, Thayná Bragagnollo; ROSSATO, Lucas; SCORSOLINI-COMIN, Fabio.
Desafios à adaptação ao ensino superior em graduandos de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, [S.l.], v. 76, p. e234666, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2175-35392023-234666. Acesso em: 14 de nov. 2024.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA. Instrução Normativa Nº 18, de 05 de agosto de 2021. Estabelece o Programa Institucional Unipampa Cidadã. Bagé, 2021. Disponível em: https://unipampa.edu.br/portal/sites/default/files/documentos/instrucao_normativa_18-2021_revoga_in-17-2021_normatiza_o_programa_institucional_unipampa_cidada.pdf. Acesso em: 25 nov. 2024.

VERAS, Renata Meira; SILVA, Daiane da Luz. A democratização do acesso ao ensino superior no Brasil é um instrumento de justiça social: Possibilidades e desafios na formação de professores. EccoS – Revista Científica, [S. l.], n. 54, p. e17325, 2020. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/eccos/article/view/17325. Acesso em: 14 nov. 2024.

Juliane Davila e Paiva:
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ensino de Línguas (PPGEL)

Esse texto é parte do dossiê “Relatos De Experiências E Divulgação Científica Na Formação Continuada De Professores De Línguas Na Pós-Graduação”. Você pode encontrar os outros textos aqui:

https://junipampa.info/educacao/ano-12-no-102-2024-relatos-de-experiencias-e-divulgacao-cientifica-na-formacao-continuada-de-professores-de-linguas-na-pos-graduacao/

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