Ano 12 Nº 107/2024 Relato de experiência étnico-linguística-pedagógica num curso de Agroecologia do IFAM junto à comunidade indígena Andirá-Marau da Etnia Sateré-Mawé em Maués, região do médio rio Amazonas.
Por: Oraldo Eliseu Angeloto
Google; Paisagens de Maués
Começamos nossa aventura pedagógica em 2019, no Campus Maués do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), onde eu estava lotado como professor de língua portuguesa e língua espanhola: fomos então convocados para compor a equipe de apoio aos professores que iriam ministrar suas aulas nos dez dias seguintes na comunidade indígena Andirá-Marau da Etnia Sateré-Mawé (Ilha Mechilles) localizada na fronteira dos estados do Amazonas e do Pará.
O Instituto Federal do amazonas, IFAM Campus Maués, atendendo a pedidos das lideranças indígenas locais, vinha ofertando desde 2013 o Curso Técnico de Nível Médio em Agroecologia aos moradores dessa comunidade indígena, curso este que acontecia em frequência quinzenal e modular com alternância entre aulas presenciais e períodos de aplicação e execução de projetos nas residências dos alunos, atendendo à grade curricular do curso de Agroecologia do IFAM e adaptado ao projeto Político Pedagógico das escolas Sateré-Mawé (PPPESM), que fora concebido pela própria comunidade atendendo a suas especificidades (SEMED, 2015).
O povo Sateré-Mawé (“lagarta de fogo”) é Bilíngue, pois fala português e a língua Mawé, de tronco Tupi e, segundo Saraiva (2016), a unidade de referência para essa etnia é a T.I. Andirá-Marau. Com uma população de 13.350 indígenas, segundo dados do CGTSM – Conselho Geral das Tribos Sateré-Mawé (2014), a referida etnia está dividida em três grandes áreas, caracterizadas pelos rios que as banham: o rio Andirá, no município de Barreirinha, rio Marau em Maués e rio Uaicurapá no município de Parintins – AM (Saraiva, 2016). Torres (2014, p.09 apud Saraiva, 2016, p.9) afirma que “os Sateré-Mawé veem o mundo e os fenômenos da vida através das lentes de seus saberes tradicionais, cujos substratos mitológicos assenta-se a sua visão de mundo material e imaterial”. A estrutura social desse grupo é caracterizada pela divisão em ywanias (clãs), dispersos pelas comunidades, ou seja, estão divididos, mas não agrupados por ywanias. Diversos clãs compõem essa etnia, dentre eles podemos citar: Sateré (Lagarta de fogo); Waraná (Guaraná); Akuri (cutia); Ywaçai (Açaí); Moi (Cobra).
O Curso Técnico em Agroecologia (PROEJA) do Instituto Federal do Amazonas Campus-Maués surgiu da necessidade de sequenciar os estudos dos indígenas da etnia Sateré-Mawé dentro da Terra Indígena Andirá-Marau, no município de Maués-AM, uma vez que era ofertado até o 9° ano do Ensino Fundamental. Perante o exposto, nasce uma proposta para atender esses anseios, e um grupo de professores se dispuseram a trabalhar uma educação do campo com a pedagogia da alternância na comunidade indígena. O curso teve início no ano de 2018 e o ingresso dos estudantes se deu por meio de processo de seleção específico no edital Nº 26/2018 (Leal; Vieira, 2022), seguindo até 2022.
O conceito de Agroecologia, segundo Norder et al. (2019, p. 293), entre outros aspectos, fundamenta-se na “utilização de processos naturais e biológicos na produção agropecuária”. Norder et al. (2019, p. 293 apud Costabeber; Caporal, 2000) esclarecem que no Brasil predomina a tendência baseada na “economia política ecológica”, ligada ao movimento camponês. Isso se deve a forte promoção da Agroecologia por organizações da agricultura familiar desde a década de 1990 no país. Segundo esses autores:
Neste processo, a Agroecologia passou a compor as diretrizes programáticas de políticas públicas para agricultores familiares, populações tradicionais e indígenas, através da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), instituída em agosto de 2012 por meio do Decreto n. 7.794, e da Política Nacional de Gestão Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída em junho do mesmo ano através do Decreto n. 7.747. Entre as principais diretrizes da Agroecologia estão a valorização do conhecimento tradicional e o estabelecimento de metodologias participativas e dialógicas com as comunidades. Do ponto de vista técnico, há uma ênfase para uma compatibilização das atividades agropecuárias com as peculiaridades ecológicas e socioculturais de cada região. Nas terras indígenas, as práticas agroecológicas vêm sendo associadas à recuperação de áreas degradadas, à implementação de sistemas agroflorestais e ao extrativismo sustentável. (Norder et al., 2019, p.293-294).
Em termos metodológicos, Leal e Vieira (2022) afirmam que a Pedagogia da Alternância tem como princípio uma formação humanista que articula dialeticamente o ensino formal e o trabalho produtivo. A respeito dessa pedagogia, Leal e Vieira (2022, p.175 apud Silva, 2016) explicam que “é um sentido de estratégia de escolarização que possibilita aos jovens que vivem no campo conjugar a formação escolar com as atividades acadêmicas e as tarefas na unidade produtiva familiar”.
Retomando nosso relato, partimos ao meio dia de Maués, cidade da região do médio rio Amazonas, onde despontam os rios Maués-Açu, Maués-Miri, Apoquitaua, Marau, Urupadi, Paraconi, com inúmeros afluentes, além de diversos lagos e igapós, rios estes que nos dão a sensação de estarmos adentrando em um imenso ‘mundo das águas’ devido ao fato de que há uma mistura de imagens com entrelaçamento destes com a densa floresta amazônica e sua quase simbiose com a população ribeirinha que, a cada dezena de quilômetros, surge em suas casinhas suspensas nas beiras e ou em pequenas embarcações denominadas ‘rabetas’ e barcos médios de madeira. Viajamos cerca de 6 horas em uma lancha a motor do instituto, adentrando a regiões inundadas onde a floresta surge do meio das águas compondo um labirinto natural, cuja navegação cabe a experientes pilotos e chegamos sob a luz avermelhada do belo entardecer do norte, na comunidade indígena Andirá-Marau – Ilha Michilles – sede da comunidade Sateré-Maué.
Após sermos muito bem acolhidos na cozinha comunitária, que fica ao lado do campo de futebol, onde todas as tardes os curumins e as cunhantãs praticam o esporte nacional, fomos muito bem alimentados e convidados a tomar guaraná, ralado em língua de pirarucu, numa cuia coletiva que passava de mão em mão. Nos acomodamos na cabana dos visitantes, onde montamos nossas redes e passaríamos as seguintes noites tropicais e escuras, aṕos o desligamento dos geradores de energia às 22 horas, mas que sempre se encerram com um fresco amanhecer banhado pela sombra da floresta.
Nos primeiros dias de nossa aventura, presenciamos o grande evento das aulas do Curso de Agroecologia, que são 5 dias de tempo escola a cada mês conforme o calendário do curso por meio da pedagogia da alternância, e que se davam da seguinte maneira:
– Os discentes, chegados em suas embarcações das diversas comunidades adjacentes e, aproximadamente a metade deles da própria Ilha MIchilles, lotaram uma maloca (balcão) com capacidade para mais ou menos umas 200 pessoas, jovens e adolescentes dos 14 aos 30 anos, casais, solteiros, pais e filhos; trazendo consigo seus relatórios dos chamados ‘projetos de vida’, quando relatam além do cumprimento das tarefas na unidade produtiva familiar, também suas vivências de pescas, saberes tradicionais e experiências de vida.
– A Grande Aula acontecia na grande maloca, como já descrevemos, praticamente ao ar livre, quando os docentes intercalaram seus períodos de aula entre o matutino e o vespertino, cada um ministrando sua disciplina específica orientada por um único ‘Tema Norteador’ (Exemplo: ‘Homem, terra e sustentabilidade’) e sempre acompanhado de um intérprete, que traduzia para a língua Sateré-Mawé, intermediando a tradução desses conceitos científicos com sua cultura e crenças. De modo semelhante, Leal e Vieira (2022, p.183) ilustram as atividades de interação utilizadas pelos professores, com “o uso da fauna, flora em sua cultura, quando durante a atividade teórica ou prática solicitada surgem várias produções e narrativas sobre os saberes ancestrais […]”.
Nos dias seguintes, seguiu-se a fase de alternância ou fase comunidade, quando os discentes retornavam a suas residências onde seguiam com seus projetos agroecológicos (hortas, criações, reflorestamento, etc), e nossa equipe discente seguia com um trabalho de monitoramento desses projetos no qual, cumpria-se a conferência de um check list de atividades pré orientadas e cumpridas pelos futuros técnicos. Em cada residência, seguimos com a conferência e registros fotográficos dos projetos discentes, embora não podíamos recusar aos convites para tomar um cafezinho coado no fogão a lenha acompanhado de raízes cozidas das mais diversas e colhidas diretamente da roça.
Ainda na sede da comunidade, Ilha Michiles, conhecemos as lideranças do povo, das quais damos especial destaque às mulheres mais velhas, que, além de exercerem sua autoridade de matriarcas, também se destacavam na preservação dos conhecimentos tradicionais como, por exemplo, o cultivo de ervas curativas das mais variadas doenças, quando senti na pele a eficácia curativa dos óleos de copaíba e andiroba em uma ferida que me infeccionara num dos dedos da mão.
Cada visita era uma nova descoberta: desde a comunidade Monte Orebe, que ficava no alto de um morro à beira do rio com diversas moradias de madeira simples mas acolhedoras, até isoladas residências de ribeirinhos que nos faziam lembrar da canção que diz; ‘No rancho fundo, bem prá lá do fim do mundo’, as quais nos ofereciam uma visão de simplicidade única, porém habitadas por famílias que viviam em quase perfeito equilíbrio com a natureza, com suas plantações de macaxeira, moinhos e tórra de farinha, seus barquinhos e suas redes de dormir.
Os dias se passaram e tivemos que retornar ao nosso pequeno reduto urbano no meio da grande floresta – a cidade de Maués-AM, mas nunca mais esqueceremos dessa “extravagante” aventura étnico-linguística-pedagógica num curso de Agroecologia do IFAM na comunidade indígena Andirá-Marau da Etnia Sateré-Mawé, nas entranhas da Amazônia.
Ao vivenciarmos experiências como a ‘Alternância no Curso de Agroecologia na Ilha Michiles’, nos encontramos imersos no contexto do professor pesquisador participante que não se limita apenas a ministrar aulas, como também interage com seus interlocutores numa relação de aprendizagem mútua, construindo novas tecnologias e valorizando os saberes em ambiente de cooperação e em sincronia com a realidade da comunidade ‘locus’ de sua pesquisa-ação.
Concluo dizendo que essa experiência, somada a outras situações de ensino por mim vividas, como a ministração da disciplina ligada ao contexto Camponês – Noções de Agricultura e Zootecnia, e Língua portuguesa e Espanhola para estudantes, filhos de alemães e ou indígenas ‘cinta-larga’, de uma escola do Ensino Médio do Campo em Espigão d’Oeste – Rondônia, contribuíram positivamente para minha decisão em realizar pesquisa científica no Mestrado Profissional em Ensino de Línguas – PPGEL UNIPAMPA, o qual tem como um de seus objetivos “contribuir para a consolidação de concepções mais abrangentes de desenvolvimento de ensino, tais como conhecimento, formação humana, cidadania, valores éticos e transformação social” (UNIPAMPA, 2024, p.3), exercendo seu importante papel na Formação de Professores, desenvolvimento regional e valorização do Ensino no Brasil.
Referências
LEAL, Davi Avelino; VIEIRA, Silvia Carvalho. Conhecendo a experiência por alternância do curso de Agroecologia do PROEJA indígena na Ilha Michilles. In: Perspectivas e desafios no ensino de ciências e humanidades. MEDEIROS, Adriana Francisca de; BATISTA, Eliane Regina Martins; MASCARENHAS, Suely Aparecida do Nascimento (Organizadoras). Manaus: EDUA, São Paulo; ALEXA, 2022. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/377659853_CONHECENDO_A_EXPERIENCIA_POR_ALTERNANCIA_NO_CURSO_DE_AGROECOLOGIA_DO_PROEJA_INDIGENA_NA_ILHA_MICHILES Acesso em: 25. nov. 2024.
NORDER, Luiz Antonio C. et al. Agroecologia em terras indígenas no Brasil: uma revisão bibliográfica. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 291, 2019. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/EspacoAmerindio/article/view/88858. Acesso em: 19 dez. 2024.
SARAIVA, Darlane Cristina Maciel. O ensino e a aprendizagem da matemática na educação escolar indígena da etnia Sateré-Mawé. 2016. 83 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica-RJ. Disponível em: https://rima.ufrrj.br/jspui/handle/20.500.14407/12952 Acesso em: 25 nov. 2024.
SEMED, Maués-AM. Proposta para Funcionamento da Educação Escolar Indígena nas Escolas Sateré-Mawé (2015). Setor de Educação Escolar Indígena Sateré – Mawé (SEEISM).
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA (UNIPAMPA). Regimento do Programa de Pós-graduação em Ensino de Línguas. Mestrado Profissional. Bagé, RS: Campus Bagé, 2024. Disponível em: https://cursos.unipampa.edu.br/cursos/ppgel/sobre-o-curso/regimento-do-programa/ Acesso em: 25 nov. 2024.
Oraldo Eliseu Angeloto Prof. E.B.T.T. – IFAM, Mestrando em Ensino de Línguas, PPGEL- UNIPAMPA-Bagé RS
Esse texto é parte do dossiê “Relatos De Experiências E Divulgação Científica Na Formação Continuada De Professores De Línguas Na Pós-Graduação”. Você pode encontrar os outros textos aqui: