Ano 12 Nº 107/2024 Entre fronteiras e continentes: relato de uma professora-pesquisadora que não abre mão do sonho de uma educação transformadora
Por: Rita de Cássia
Fonte: Arquivo pessoal (Autora).
Minha história tem início na fronteira entre Aceguá, Brasil, e Aceguá, Uruguai, onde nasci e cresci, aprendendo desde cedo a importância dos estudos e do trabalho. Desde a infância, sempre busquei um sentido maior para a vida, através das experiências e partilhas das vivências com o povo na região da fronteira entre Aceguá Brasil e Aceguá Uruguai, do qual faço parte até hoje, mesmo após ter mudado de cidade para estudar e trabalhar. Vinda do interior e cheia de sonhos, almejava ampliar meus conhecimentos e ingressar em uma universidade. Quando a oportunidade surgiu, aos 17 anos, agarrei-a com determinação, embarcando em uma jornada que continua a transformar minha vida.
Foi minha avó quem plantou em mim a vocação para o magistério e a licenciatura. Muitos caminhos me levaram a crer que, se eu realmente quisesse contribuir para um mundo melhor, precisaria me dedicar aos estudos e evitar a acomodação. A educação foi, e permanece sendo, o único caminho para que meus sonhos se tornassem realidade e também para me manter sonhando.
Entre 2010 e 2014, cursei Letras – Português/Espanhol e suas respectivas literaturas, no turno da noite, na Unipampa. A universidade foi um espaço de debates, construção de conhecimento, luta e resistência, além de formação humana e social. Lá, aprendi que, para ser educadora, o testemunho e a coerência são essenciais. Durante esse período, tive a oportunidade de estagiar e atuar como voluntária e bolsista no projeto de extensão “Núcleo de Línguas Adicionais”, onde lecionei espanhol por quase todo período da graduação. Foi nesse ambiente que comecei a entender a complexidade e a beleza do ato de educar.
Com o tempo, percebi que a educação é uma via de mão dupla, marcada pela troca e pelo compromisso. A formação acadêmica me ajudou a não cair no comodismo, mantendo vivo o desejo de lutar por uma educação pública de qualidade para todos. Cada aula, projeto e reflexão me impulsionou a continuar crescendo, sempre acreditando que a educação é um processo contínuo.
Tomando como ponto de partida o desejo de dar aulas e ser professora, fui percebendo que esse sonho fazia brotar em mim o gosto pela pesquisa, justamente por buscar entender e refletir sobre cada prática.
Uma das referências para tal reflexão é o artigo de Tatiana Bezerra Fagundes “Os conceitos de professor pesquisador e professor reflexivo: perspectivas do trabalho docente”, que nos ajuda a perceber os avanços e os entrelaces entre o professor reflexivo e o pesquisador, se tornando um ponto de partida para uma nova atitude docente por minha parte, que venho buscando na reflexão cotidiana de sala de aula e na necessidade da pesquisa um caminho para melhorar a prática docente.
Antes de prosseguir com o relato, desejo reverberar os conceitos citados acima a partir do estudo do referente artigo feito nas aulas de Teoria e Prática no Ensino de Línguas I do Mestrado profissional de Ensino de Línguas do qual faço parte neste momento. Para Fagundes (2016), os conceitos de professor pesquisador e professor reflexivo destacam importantes perspectivas sobre o trabalho docente, promovendo a valorização e o desenvolvimento contínuo da prática educacional. Ambos os modelos compartilham a visão do professor como um profissional crítico e autônomo, capaz de integrar teoria e prática para transformar o ambiente escolar e a aprendizagem.
A autora esclarece, fazendo uma linha do tempo, como esse professor pesquisador vai se inserindo, em termos conceituais e práticos, na educação brasileira. A formação do professor reflexivo no Brasil é influenciada por diversos fatores, tais como políticas públicas, tendências pedagógicas e contextos socioculturais. O conceito é amplamente debatido por estudiosos como Schön, que popularizou a ideia da “reflexão na ação”, e também por teóricos brasileiros como Paulo Freire, que enfatizou a prática reflexiva como ferramenta de emancipação.
Fagundes (2016) afirma que a formação do professor como pesquisador está intimamente relacionada à articulação entre ensino e pesquisa, em que o docente é incentivado a investigar sua prática pedagógica e os contextos educacionais nos quais atua. A perspectiva do professor como pesquisador se opõe à visão tradicional do docente como mero transmissor de conteúdos, defendendo que ele deve ser um produtor de conhecimento, reflexivo sobre sua prática e capaz de transformar o ambiente educacional. Assim o professor pesquisador é caracterizado por sua postura ativa diante da realidade educacional, utilizando a pesquisa como ferramenta para compreender e solucionar os desafios do ensino. Nesse contexto, investigar a própria prática é um processo essencial, pois permite ao docente produzir conhecimento a partir das experiências vividas na escola, conectando-as a fundamentos teóricos. Assim, a pesquisa deixa de ser apenas uma atividade acadêmica e passa a ser parte integrante do trabalho pedagógico.
Por outro lado, o conceito de professor reflexivo enfatiza a análise crítica e constante da prática docente. Refletir sobre métodos de ensino, dinâmicas de sala de aula e resultados pedagógicos possibilita ao professor identificar pontos de melhoria e implementar mudanças significativas. Essa postura reflexiva promove a conscientização sobre os impactos das decisões pedagógicas e reforça o compromisso ético do professor com a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos.
Apesar de suas diferenças com o professor pesquisador focando mais no método investigativo estruturado e o professor reflexivo priorizando a análise cotidiana, ambas as perspectivas convergem ao defender o papel do professor como transformador. Tanto o professor reflexivo como o pesquisador valorizam a autonomia docente e fortalecem a formação continuada, contribuindo para uma prática pedagógica mais consciente e eficaz.
Tendo essas duas vertentes latentes em mim, em 2018, embarquei para Moçambique, na África, onde trabalhei voluntariamente em projetos sociais focados na alfabetização de crianças e jovens, por três anos. Essa experiência me trouxe um profundo compromisso com minha missão como educadora. Descobri que, no fim das contas, quem mais aprendeu fui eu. Lá, sem muitos recursos, a presença atenta e a escuta ativa se tornaram os maiores instrumentos de ensino. O contato com a realidade local — crianças caminhando quilômetros até a escola, famílias buscando água durante longas jornadas — me fez valorizar ainda mais o que temos e reconhecer a profunda desigualdade social.
Aproveito para trazer para este relato a essência freiriana, que nos mostra o quando só acontecerá a ação transformadora quando fomos protagonistas e cientes do ser social e histórico que construímos. Paulo Freire, no seu livro Pedagogia do Oprimido, nos diz que: “[…] através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam a história e se fazem seres histórico-sociais” (Freire, 1987, p.59).
Assim, Freire vai de encontro ao desejo que tenho de que todos tenham voz, vez e lugar e que para que esse compromisso se concretize é que todos desempenhem um papel ativo na mudança de sua própria realidade, sendo protagonistas do processo de libertação como o autor nos aponta:
Se o compromisso verdadeiro com eles, implicando na transformação da realidade em que se acham oprimidos, reclama uma teoria da ação transformadora, esta não pode deixar de reconhecer-lhes um papel fundamental no processo da transformação. (1987, p.77)
Com esse desejo de transformação, a começar por transformar minha própria prática, em 2021, de volta ao Brasil, retomei minha carreira como professora e senti a necessidade de continuar meus estudos. Foi assim que, no segundo semestre de 2024, com o coração transbordante, ingressei no Mestrado Profissional em Ensino de Línguas.
E neste momento, cursando o Mestrado Profissional em Ensino de Línguas, sinto que estou vivendo uma das fases mais gratificantes da minha trajetória. Cada aula, cada leitura e cada debate me proporcionam novas descobertas e reflexões, ampliando minha visão de mundo e me preparando para desafios ainda maiores. É um privilégio poder continuar essa jornada acadêmica, agora com um olhar mais maduro, fruto das experiências que acumulei ao longo dos anos e em especial junto ao povo Africano. O mestrado tem sido um espaço de crescimento pessoal e social, onde reafirmo diariamente minha paixão pela educação e pelo poder transformador do conhecimento. Sinto uma profunda felicidade ao perceber o quanto podemos fazer do espaço acadêmico um lugar que irradie luz aos passos trilhados pela educação na sociedade. A oportunidade de voltar aos estudos, me torna agora, mais que nunca, uma professora-pesquisadora, o que me enche de entusiasmo e ao mesmo tempo me compromete com o fazer docente e o agir científico que a curiosidade não supre mais.
Ao compartilhar essa jornada com colegas e professores, cada passo me faz acreditar ainda mais na importância da formação continuada e na missão de promover um ensino que faça a diferença. A posição de estar no mestrado, mergulhada em pesquisas que dialogam com minhas vivências, me fortalece e me inspira a seguir adiante, sempre com o coração aberto para aprender e ensinar, desta vez com os sentidos voltados à pesquisa.
Finalizo esse relato afirmando que não há retorno maior para a sociedade que poder passar por um espaço em que nos libertamos e nos comprometemos mutuamente em construirmos uma sociedade mais humana e justa. É isso que a universidade faz com a gente: liberta, encanta e faz querer compartilhar, aos quatro cantos do mundo: que ainda é tempo de sonhar e “esperançar”, pois como diz Freire (2000, p. 18): “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda”. E para que essa mudança aconteça de forma mais palpável, de agora em diante, terei a possibilidade de ser essa professora reflexiva, mas sobretudo pesquisadora.
REFERÊNCIAS:
FAGUNDES, Tatiana Bezerra. Os conceitos de professor pesquisador e professor reflexivo: perspectivas do trabalho docente. Revista Brasileira de Educação, v. 20, n. 60, p. 831-851, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/. Acesso em: 18 nov. 2024.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio Fde Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
Rita de Cássia Patron Bandera, tenho 32 anos, e gostaria de compartilhar um pouco da minha trajetória pessoal e profissional, que por sua vez é profundamente marcada pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa).
Esse texto é parte do dossiê “Relatos De Experiências E Divulgação Científica Na Formação Continuada De Professores De Línguas Na Pós-Graduação”. Você pode encontrar os outros textos aqui: