Ano 12 Nº 065/2024 – Ori: potência, ancestralidade
Por Hélen de Oliveira Soares Jardim
Minha bisavó foi mãe solo, filha de ex-escravizada. Não pôde estudar.
Minha vó, casou, amamentou. Os dela e os filhos da patroa. Mal pôde estudar.
Minha mãe, lavou roupa, lavou chão, da patroa branca. Assim como elas. Não pôde estudar o quanto desejava.
Mas tu: “Estuda!” Dizia minha mãe.
Desde cedo, conheci a realidade.
Nas faxinas que ia junto a minha mãe. Nos sapatos velhos que ganhávamos das “patroas”. Da comida que era separada.
Gravidez na adolescência.
No trabalho, chorava porque queria estudar.
Não podia! Tinha filhas para ajudar a sustentar.
Lembro-me da vó, que sonhava em ser professora de literatura. Escritora!
E pensava: Será que isso que é reservado pra nós?
Um dia, no chão do terreiro com pés descalços e cabeça no chão.
Diante da espiritualidade.
A preta velha disse: “Zifia, tu vai estudar. Vai ser doutora”.
Eu? Será que ela fala comigo? Mulher, Preta, não!
Ué, tu não era feita de fé? Vai sorrir! Vai lutar! Tá esquecendo de onde “suncé veio”?
“Coragem”
Lembrei-me do meu avô que alisava meu cabelo quando pequena.
De suas palavras:
“Negrinha, tu vai estudar tanto, vai ser pós-dotora”.
Me perguntava: Como assim?
Eu não queria ser médica! O que é isso que meu vô tanto fala? Ele não aprendera a ler…
Oralidade, hoje ancestral.
Mas se as palavras tem potência, resolvi ouvir quem chegou antes de mim.
Mesmo com barriga roncando, doendo, desempregada, resolvi tentar.
Prestei vestibular… universidade pública, sétimo lugar.
Fui estudar. Ia a pé. Sol, chuva, frio. Fome.
Chorei, sorri. A única negra na sala.
As “branca da colonialidade” diziam: Desiste! Não é para ti!
Não é lugar de preto, de negra. Da vila!
Ah, o racismo! Ele dói. Ele se disfarça. Como ferida que ninguém vê. Muito sutil.
Pedia: Abre meus caminhos, façam de mim um Ori forte!
Daí lembrava da preta velha, do caboclo, da pomba-gira (que abria caminho),
do erê (pra não esquecer a criança cheia de sonhos), da malandra (e traquejo que
preciso ter), e do meu avô que virara ancestral.
Oyá deu força pra continuar.
Ah, Ori! Me fortaleci!
Meu corpo é matéria ancestral que traz nas entranhas a história de muitos.
Então, universidade
É lugar de negra. Sim!
O canudo chegou.
Agora a negra era “assistente social”.
Desemprego de novo.
A negra aqui, não desistiu.
Especialização!
Uma, duas, três, quatro.
Cursos de extensão.
Capacitação.
E a preta benzia e dizia: “Zifia, tu vai ser doutora”!
Foi aí que entendi que ser preta, retinta ou não,
Nós somos luta.
Era coletivo. Não era somente sobre mim.
Resistência. Resiliência. (Re) existência.
Virei mestre!
E a branca dizia: “Tu não vai passar disso, tu não tem capacidade”.
Desiste e vai trabalhar!
Chorei, sorri.
Lembrei da preta velha, do vô… e encontrei quem me deu a mão, incentivou
Me fortaleci!
Criei coragem e me inscrevi.
Foram três processos. Diziam: Como três?
Sim, e neles passei. Venci!
Vi caras tortas. Uma Mulher. Preta. Doutora. E agora?
Doutoranda!
Sou Preta e tenho ancestralidade. Essa é a realidade.
O compromisso com os meus.
Com o povo do terreiro, na batida do atabaque. Do pé no chão.
Lembranças das lutas do cativeiro. Dos quilombos.
Dos que vieram nos navios negreiros.
E que,
Apesar de torturados, dos sonhos arrancados. Lutaram.
Ancestralidade. A força que nos move.
Segui. Nas encruzilhadas da vida.
Também com o compromisso de abrir passagem aos que virão mais tarde.
Axé! Ubuntu!
Doutoranda em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt) – Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Mestre em Ensino – Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Especialista em Educação e Diversidade Cultural – Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Especialista em Docência na Educação Superior (Universidade de São Braz), Especialista em Gestão de Educação a Distância – Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO), Graduada em Serviço Social.(ANHANGUERA). Atua como pesquisadora no grupo de pesquisa Philos Sophias, vinculado à Universidade Federal do Pampa, Pesquisadora Associada na Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Integrante do NEABI-UNIPAMPA-Bagé.