Ano 12 Nº 057/2024 – Direção de arte: olhares, vivências e afetos lançados às interfaces entre o cinema, a educação e os direitos humanos
Por Adriana Gonçalves Ferreira
Ao receber o convite do diretor e um dos roteiristas do curta metragem DA JANELA DO TEU QUARTO Wagner Previtalli, me senti acariciada pela comunidade LGBTQIAPN+, pois considero um ato de generosidade me incluírem num projeto onde pude mergulhar no universo da diversidade de forma tão sensível e profunda, que é a história criada para o filme, desenvolvida na linguagem do cinema.
Fui recebida e acolhida num misto repleto de afetos e liberdade para que eu pudesse contribuir na construção da narrativa por meio da criação do cenário e objetos de arte.
Concebemos uma estética popular no ambiente de um quarto modesto e sua janela, buscando retratar um personagem simples, batalhador, que se apaixona e vive uma breve e intensa paixão onde o seu quarto é território livre, como se o mundo para além da janela não importasse, apesar de esse mundo externo aparecer nos diálogos do filme e adentrar subliminarmente o pequeno espaço.
A inspiração da paleta de cores vem inspirada nas cores da bandeira do movimento e cria uma atmosfera leve na cenografia, onde as variações me fizeram perceber as subjetividades dessas cores contidas num discurso de luta por direitos e liberdades do ser, de ser e estar no mundo. Ao pensar sobre a produção da arte e o mundo externo para além da janela do quarto, me senti acolhida, pois como uma mulher cis e hétero, a experiência me proporcionou aprendizados sobre a abertura das “portas da caixa” que se abriram para compreender que não é sobre mim. É sobre tudo aquilo que não segue um modelo hétero-normativo ditado pelo modelo dominante e imposto da sociedade machista em que vivemos, que nos agride enquanto sociedade também através da misoginia e por homofobia, transfobia e tantas outras palavras carregadas de ódio e intolerância sob tudo o que for entendido como “afeminado” no contexto do pensamento hegemônico da sociedade. Me apaixonei por esse trabalho, fui afetada por ele, a experiência e convívio nas diárias foram para mim um dispositivo.
O dispositivo considera um espaço aberto, múltiplo e diverso que é transformável na sua potencialidade e percursos, que são únicos e singulares para cada sujeito e grupo:
Dispositivo pode ser o que define como algo “que dispõe, que nos afeta e nos transforma, resolve, decide, ou seja, exerce poder nesse sentido; mas ao mesmo tempo põe em prática, cria uma situação, prepara, antecipa, propõe, gera aptidão para algum propósito, põe em jogo potencialidade e possibilidade para o futuro.” Para ela, se inventa um artifício, uma mistura de arte e técnica, de ofício e profissão, de habilidade, destreza, conhecimento, maestria a ser colocada em prática” (SOUTO, 2019, p.6).
Meu trabalho também transita entre cinema e educação, espaço em que utilizo a pedagogia do dispositivo. Nessa dimensão em torno de dispositivo busco possibilidades de práticas e reflexões. Pensar sobre as pessoas, coletivos, respeitando a liberdade de criação de cada um (a), contexto atravessado pela questão dos direitos humanos, onde podemos dimensionar a nós mesmos como patrimônio de nossa existência, a partir de então perceber olhares sobre educação, sobre cinema e audiovisual e também sobre as nossas memórias, a vida em sociedade.
Na produção de objetos que compõem a arte do filme, procurei montar um discurso que além de fabular uma narrativa cotidiana, também trouxesse em suas formas e conteúdos, imagens de corpos gays contidos em cartazes de filmes, postais e em capas de livros espalhados pelo quarto. Também optei por demais objetos inerentes à orientação sexual, apenas gostos e interesses de jovens apaixonados viventes do mundo, como capas de discos de vinil, livros e enfeites decorativos que de um modo ou outro trazem naturalmente na música, na literatura ou na cultura coerências na defesa dos direitos humanos.
Pensar a vida a partir daquilo que nos cerca, observar através da câmera e perceber imagem e som ao redor, são experiências que os bastidores do cinema nos possibilitam.
Para mim o cinema desponta olhares e possibilidades para trabalhar educações. Pensar cinema comunitário em espaços como escolas, bairros, grupos e demais coletivos é imprescindível no meu percurso.
Considero que participar desse filme para mim é uma afirmação sobre a minha pesquisa que levanta possibilidades sobre aprender e ensinar com cinema. Pois as metodologias que envolvem cinemas e educações nos permitem olhares através da câmera, sobre si, sobre o outro e sobre o eixo de quem filma, quem é filmado ou o que é filmado, a câmera e o território. E o território foi o quarto, e também o além do quarto, a diversidade da vida.
Todavia, a oportunidade de fazer a direção de arte do filme “Da janela do teu quarto” foi, é e continuará sendo importante no meu trajeto, tanto como educadora audiovisual, como para minha existência no mundo, pois atualmente trabalho cinema educação em uma escola de turno integral com crianças e adolescentes.
Esse filme traz para mim inclusive a reflexão sobre as infâncias borradas pela normatização e normalização de condutas impostas inspiradas nas existências padronizadas. Reúno neste relato, um pouco sobre o que penso a respeito das potências que habitam os nós existentes nos laços entre o cinema e a educação, atravessados pelos direitos humanos.
Referências
SOUTO, Marta. Acerca de la noción de dispositivo en la formación universitaria. Educación, Lenguaje y Sociedad. Vol. XVI Nº 16 (Abril 2019).
GOMES DE OLIVEIRA, Megg Rayara. Nem no cnetro, nem a margem!Corpos que escapam às normas de raça e de gênero. Editora Drives. Salvador BA, 2020.
Da Janela do Teu Quarto, uma apresentação
Adriana Gonçalves Ferreira é graduada em comunicação social, mestre em patrimônio cultural e doutoranda no PPGE na UFSM, onde pesquisa cinemas, educação e imaginário social. Tem formação em cinema, educação e direitos humanos na UFF. É realizadora e educadora audiovisual. Está a frente do ponto de cultura Pampa Sem Fronteiras, espaço de promoção, formação e difusão do cinema de fronteira.