ANO 11 Nº 078/2023 – Mulheres Negras de Axé em terreiros de comunidades afro-brasileiras 

Por Hélen de Oliveira Soares Jardim

A pesquisa desenvolvida a partir da Dissertação de Mestrado em Ensino, concluído em 2022, na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA/Campus Bagé), quando o mote do trabalho realizado foi pensar a educação de mulheres negras afro-brasileiras a partir das narrativas de uma coletividade de praticantes da Umbanda da cidade de Bagé (RS), possibilitou trazer para o cerne da universidade, agora como doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Doutorado em Antropologia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), os saberes de mulheres negras de axé integrantes de terreiros em comunidades afro-brasileiros no sentido de entender como se processa a educação nesses cotidianos, as relações intergeracionais de avós, mães e filhas com a ancestralidade, a fé nos orixás que transcende os limites entre os espaços domésticos, ritualísticos, do trabalho e a vida comunitária e coletiva dos povos de terreiro, a qual expressa estratégias de resistência ao embranquecimento cultural imposto pelo padrão eurocêntrico, heteronormativo e cristão. 

O engajamento epistêmico e político na decolonialidade vão ao encontro das forças que estão comprometidas com a subversão do pacto da branquitude (BENTO, 2022). Diz a autora que o pacto da branquitude é uma espécie de narcisismo, no qual “as formas de exclusão e manutenção dos privilégios nos mais diferentes tipos de instituições” levam a negação do outro, do diferente visto como ameaça: “Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do preconceito, da representação que é feita do outro e da forma de como reagimos a ele” (BENTO, 2022, p. 18).

Defendo que os saberes, poderes e fazeres de mulheres negras apontam sinais de uma educação antirracista, antissexista e decolonial forjada nas comunidades religiosas afro-brasileiras, sinais de uma arte de existir afro, criada por essas mulheres negras potentes em seus territórios.

Ruth Landes (2019), no período pós-abolição da escravatura, trouxe suas impressões, sensações, emoções e sentimentos que foram expostos em uma narrativa em que é privilegiada a ideia do encontro com o outro. Em sua tese de doutoramento que deu origem ao livro “A Cidade das Mulheres”, escrito na contramão das tendências científicas vigentes no final da década de 40, contribuiu para a construção de um modo de fazer pesquisa, marcado pela valorização da experiência (a pesquisa de campo), pela sensibilidade para com as questões de gênero e, sobretudo, pela afirmação da singularidade das mulheres negras de axé em terreiros de comunidades afro-brasileiras. 

O processo de estudo da questão racial no Brasil desde 1910 nas Universidades Federais da época estava sendo olhado por um prisma “eurocentrado” sobre as experiências raciais. Por um lado, os antropólogos e sociólogos do período pensavam por um viés de “purismo racial”, dentro das comunidades negras. Por outro lado, havia os intelectuais negros/as que faziam uma contra reflexão de forma de organização que não passava pelo “purismo”, porque entendiam que o país é miscigenado e que há uma intersecção de culturas. Outros pontos importantes e fundamentais é olhar para a forma de produção de experiência que trouxe e jogou luz para pensar essas experiências raciais.

Mulheres negras de axé têm uma grande importância em diversas épocas, fazendo essa interlocução entre o que está no mundo externo de terreiro e no mundo interno. Essa forma de produção de experiência a partir de comunidades de terreiros e a ressignificação das religiosidades afro como prática cultural importante na comunidade negra do Brasil vai desembocar no processo de migração dos anos 70 e a reconfiguração da vida cotidiana da população negra, em outros territórios do contexto brasileiro. Desse modo, este estudo ajuda pesquisadores no contexto do século XXI a pensar esse processo de produção de uma historiografia negra a partir de suas próprias experiências e o modo de produção de vida da população negra, e que, no contexto brasileiro, é sempre marcado por um lugar de subalternidade. Alguns autores, naquela época, vão construir uma narrativa de que há três espaços possíveis ocupados pela mulher negra na configuração das relações políticas e sociais do Brasil: o corpo para o trabalho, o corpo para o prazer (não o próprio prazer, porém o prazer patriarcal), prazer da branquitude, e o corpo do afeto (mas no lugar de mãe preta que cuida da casa, dos filhos, daquela que cuida da continuidade da vida, na comunidade branca, na comunidade burguesa). 

Pensando esses marcadores sociais, esses marcadores da colonização e presença africana, nos impulsiona a não cair nesse lugar de eurocentrismo, para olhar as experiências em diáspora. Olhar as experiências africanas fora do continente a partir da produção do continente. Por exemplo, as duas formas diferentes de subjetividades, a feminina da mulher negra e a masculina, do homem negro. Naquele período histórico, havia um incentivo ao casamento inter-racial e, pós-período de guerra do Paraguai, um número expressivo de encarceramento masculino. Assim, como nas cidades cariocas (alta mortalidade masculina nos territórios), fez com que a mulher negra passasse a assumir a chefia nesses territórios, como em terreiros. O Estado fez com que outras formas de extermínio da população negra se fizessem presente. Nesse contexto de ausência da estrutura nuclear burguesa branca (pai, mãe e filhos), ou seja, forma de produção de vida, que “apesar” do racismo, “apesar” da morte, “apesar” do extermínio de corpos pretos, que é histórico… Mulheres negras se reinventaram. Foram essas mulheres que ocuparam o mercado de trabalho em vários locais do Brasil. Foram elas que foram vender peixe, que tiveram posses, que negociaram no mercado, que foram lavar as roupas, que organizaram a comunidade e criaram todo um processo e uma forma de produção de vida. 

Já na contemporaneidade, entende-se, portanto, que a produção e disseminação de conhecimentos sobre as culturas negras abrem caminhos para a desmontagem do modelo de racionalidade eurocêntrica e da imposição cultural colonial que, no passado, causaram o desterro da mãe África, as diásporas das populações negras, para produzir as condições de materialização da escravização negra. É inegável o protagonismo político de feministas negras que levantaram suas vozes contra o racismo e o machismo, desde o surgimento dos movimentos negros. 

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Fonte: Carvalho (2016)

Assim foi que Beatriz Nascimento (1989) ressignificou o termo quilombo no sentido de extrair dele a conotação puramente geográfica de refúgio de negros que escapavam à escravização, por entender esse território de forma mais ampla, como um símbolo que espelha o direito das populações negras a terra, ao lugar que ocupam na nação. Diz Nascimento: “A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou” (RATTS, 2006, p. 59). Foi assim, mulheres negras reivindicam o direito a terra, ao trabalho, à saúde, à educação, à vida digna, em inúmeras manifestações e expressões dos feminismos negros. Mobilizações que reúnem milhares de ativistas negras em luta contra todas as formas de opressão e em defesa de uma sociedade com base na dignidade humana e no desenvolvimento social equitativo. Como ocorreu na “Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, a violência e pelo bem viver”, em 2015, e no “Fórum de Mulheres Negras”, em 2018. Além das mobilizações políticas de feministas negras, outra forma de resistência refere-se às cosmovisões cultuadas nas ritualísticas afro-brasileiras dos povos de terreiros espalhados em todo território brasileiro. Manifestações que, no passado e no presente, conectam corpos, mentes e espíritos negros pela fé nos orixás, compondo territórios simbólicos de intensidades diversas (ANJOS, 2006, p. 22).

Territórios onde também sobressai a atuação de mulheres negras. Sueli Carneiro, em seu texto “O poder feminino do culto aos orixás”, escrito em 1993, se refere à mitologia iorubana como inspiração para a análise dos problemas cotidianos das mulheres negras frente ao patriarcado. Portanto, é de fundamental importância compreender que o combate ao racismo é protagonizado por homens e mulheres negras em ações políticas, sociais e culturais de corpos e vidas negras. As culturas e lutas negras em combate às necropolíticas racistas e sexistas são levadas adiante pelas movimentações políticas de comunidades negras, de mulheres de axé, intelectuais e ativistas negros/as.

Cabe às comunidades científicas dos campos das Ciências Humanas e Sociais conhecerem e fazer valer os saberes e fazeres produzidos nas culturas afrodiaspóricas das populações negras, comunidades de terreiros e militância social, política e científica mediante engajamento no combate ao racismo, ao prestar atenção às vozes negras, aos modos de vida, às lutas e manifestações culturais das populações negras. Penso que mulheres negras de axé em terreiros de comunidades afro-brasileiras resguardam heranças afro, e têm muito a nos ensinar. Mulheres negras de axé contribuem para a criação de estratégias como formas de superação, resiliência e (re)existência, afirmação afro e empoderamento, coletividade, modos de vida em sociedade, visibilidade no processo de reconhecimento cultural e de territorialidade.

REFERÊNCIAS

ANJOS, José Carlos Gomes dos. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. 1. ed. Porto Alegre, RS: Ed da UFGRS/Fundação Cultural Palmares, 2006.

BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

CARVALHO, Elen. Mulheres negras: novembro reforça a luta e a resistência das mulheres negras no Brasil. Brasil de Fato, Recife, nov., 2016. Disponível em: Novembro reforça a luta e a resistência das mulheres negras | Cidades (brasildefatope.com.br). Acesso em: 15 nov. 2023.

FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 13., 2018; FÓRUM PERMANENTE DE MULHERES PRETAS: AVALIAÇÃO DOS 30 ANOS DO I ENCONTRO NACIONAL DE MULHERES PRETAS, 2018, Salvador. Anais […]. Salvador, BA: UFBA, 2018. Disponível em: Fórum avalia 30 anos do I Encontro Nacional de Mulheres Negras – Universidade Livre Feminista Antirracista (ulfa.org.br). Acesso em: 15 dez. 2023.

LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Salvador: UFBA, 2019.

LITERAFRO. Sueli Carneiro.  Minas Gerais: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 2023. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/ensaistas/1426-sueli-carneiro . Acesso em: 15 dez. 2023.

RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza, 2006.

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Doutoranda em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt) – Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Mestre em Ensino – Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Especialista em Educação e Diversidade Cultural – Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Especialista em Docência na Educação Superior (Universidade de São Braz), Especialista em Gestão de Educação a Distância – Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO), Graduada em Serviço Social.(ANHANGUERA). Atua como pesquisadora no grupo de pesquisa Philos Sophias, na linha de pesquisa 1 – Epistemologias, Decolonialidades, Filosofias da Diferença e Educação, vinculado à Universidade Federal do Pampa. Pesquisadora Associada na Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Associada a Rede Nacional de Mulheres Negras no Combate a Violência. Atua como membro integrante do Comitê de Igualdade Racial. Membro Cofundadora do Coletivo Negro Historiafrografia, Membro do NEABI- Universidade Federal do Pampa e Promotora Legal Popular.                     

Comentários
  1. Lisiane

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