Ano 11 Nº 074/2023 – NA LITERATURA E NO NOTICIÁRIO: A NATURALIZAÇÃO DO ASSASSINATO DE UMA MULHER NEGRA
Por Willisan Coelho Muria
Faremos neste texto uma análise da morte da personagem principal do conto Maria, de Conceição Evaristo e na sequência faremos relação com o assassinato da vereadora Marielle Franco do PSOL/RJ.
Primeiramente, o fato ocorrido com a personagem Maria no conto de Conceição Evaristo de modo geral é um acontecimento extremamente marcado pelo machismo e pelo racismo, dentre outras coisas. Então, vamos tentar entender o motivo pelo qual faz sentido ou até mesmo existe uma naturalização do linchamento e da morte desta personagem.
Quando passamos a analisar o texto e até mesmo os xingamentos que eram disparados contra Maria, conseguimos perceber que todos eles são marcados por raízes de uma sociedade patriarcal e racista, uma sociedade que trata a mulher preta com inferioridade e que utiliza de suas características de gênero e de raça como ofensa ou como desprestígio.
A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha (EVARISTO, 2014, p.42).
Acreditamos que a naturalização da morte desta personagem está ligada ao preconceito e ao racismo, pois Maria era pobre, mulher e negra, para além disso, foi vista por um momento conversando com um assaltante, ou seja, aquilo já era o suficiente para deslegitimar toda sua vivência, até mesmo ao ponto de que ela pudesse ser linchada e levada à morte por conta de suas características pessoais.
[···]Estavam todos armados com facas-laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo pisoteado. Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho. (EVARISTO, 2014, p.42).
É reflexo de uma sociedade completamente doente que acontecem casos como este da personagem em questão. Se formos levar em conta todas as produções que retratam a morte de pessoas negras de forma natural, conseguimos ter a noção do porque é verossímil esse linchamento que a personagem sofre no conto de Evaristo, afinal isso é algo muito comum de vermos na mídia, até mesmo em reportagens, em que a brutalidade contra corpos pretos é tratada como algo natural.
Nesse trecho abaixo, escrito pela mestra em Jornalismo e Inglês e atual Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco reafirma o que já foi falado neste texto:
É sob uma estrutura racista e patriarcal que esses corpos estão expostos e vulnerabilizados a todo e qualquer tipo de ação dessa violência, que tem perspectivas plurais, presentes na agressão física, mas também abrangendo psicológicas, sexuais, morais e raciais.” (FRANCO, 2021, p.17).
Trago esse trecho escrito por Anielle com o intuito de iniciar a partir daqui uma breve relação entre o que acontece com a personagem Maria do conto de Conceição Evaristo, com o que ocorreu com a irmã de Anielle Franco, a vereadora carioca brutalmente executada Marielle Franco. Como diz no trecho acima citado, corpos como o de Marielle e até mesmo da personagem Maria, são a todo momento expostos e vulnerabilizados a essa violência, que não é só de gênero, mas também marcada pelo racismo e pela naturalização da morte do corpo físico de uma mulher preta e favelada.
Marielle Franco foi uma vereadora do Rio de Janeiro, negra, feminista, LGBT e criada na favela. Ela tinha como objeto de suas lutas a defesa dos direitos humanos, das mulheres e da comunidade LGBTQIAP+. A vereadora foi assassinada no dia 14 de março de 2018, quando o carro onde ela estava foi atingido por 13 tiros. A relação que gostaria de fazer aqui com o conto de Conceição Evaristo, não se dá somente no fato que levou Marielle Franco à morte de seu corpo físico, mas também como foi tratada a morte da vereadora por parte da sociedade brasileira, que a todo momento tentou descredibilizar a figura de Marielle, tentando de alguma forma justificar a morte, ou melhor, o assassinato dela.
Uma grande prova disso foram as enxurradas de fake news criadas e espalhadas para tentar frear aqueles que se importavam com a morte da vereadora e se perguntavam “Quem matou Marielle?”, uma fábrica de notícias fraudulentas começou operar após a sua execução. Nessas fake news que eram amplamente distribuídas, algumas diziam que, por exemplo, Marielle havia sido eleita pelo Comando Vermelho, em outra também dizia que ela havia sido esposa de Marcinho VP e também inventaram uma gravidez aos 16 anos. Utilizaram de elementos alusivos à sexualidade de uma mulher para colocar a sua credibilidade em dúvida e também associaram Marielle, que era uma mulher preta, favelada e bissexual, ao Comando Vermelho e ao tráfico, ou seja, criminalizaram-na, o mesmo que os passageiros do ônibus fizeram com Maria. Como se de alguma forma, alguma dessas coisas pudesse justificar a execução da vereadora e naturalizar que ela havia sido brutalmente assassinada e impedida de viver a sua vida privada, pública e política.
Por que será que a barbárie das fake news, a violência política e os discursos de ódio contra Marielle não ocuparam as capas dos jornais? Por que aqueles que se colocaram como seus algozes colheram votações gigantescas no ano de sua execução? Porque, nas entrelinhas das notícias inventadas, podemos ver séculos de racismo estrutural e violência que forjam o imaginário da população brasileira. (D’ÁVILA, 2020, p.59).
Nesse trecho retirado de um livro escrito por Manuela d’Ávila que fala sobre as redes de ódio e as fake news, conseguimos também entender e responder a nossa pergunta inicial, do por que é naturalizada a morte de corpos pretos, como o da personagem Maria do conto de Conceição Evaristo. Com os fatos aqui expostos sobre o que aconteceu com a vereadora executada Marielle Franco, conseguimos entender que, assim como para justificar o assassinato de Marielle, foram inventadas notícias fraudulentas baseadas na sua raça, no seu gênero, na sua vivência pública e até mesmo a associação a facções criminosas, o mesmo vemos na maneira como Evaristo retrata a morte da personagem Maria e o fato que levou à sua morte brutal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ÁVILA, MANUELA d’. E se fosse você?: sobrevivendo às redes de ódio e fake news. Porto Alegre, RS: Instituto E Se Fosse Você, 2020.
FRANCO, Anielle. Liberdade é não ter medo. In: ÁVILA, Manuela d’. SEMPRE FOI SOBRE NÓS: Relatos da violência política de gênero no Brasil. Volume 1. Porto Alegre, RS: Instituto E Se Fosse Você, 2021.
EVARISTO, Conceição. Maria . In: Olhos d’água’, p. 39-42. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2014.
Willisan Coelho Muria é graduando em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa. Atualmente é bolsista do Programa Institucional de Residência Pedagógica e faz parte do Centro de Escrita da Unipampa (CEU).