Ano 02 Nº 002/2014 – Capitalismo, Individualismo e a Greve: uma lógica de presídio.

Foto retirada de: https://pixabay.com/pt/silhuetas-contra-dissidente-anti-616913/

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Giovani Andreoli.

Os motivos para a atual greve dos técnicos administrativos federais nas Universidades são diversos. Como ideais, são plenamente justificáveis, pois a precarização das instituições de ensino é real e atinge a todos nós. Na prática, podemos analisar como a greve atua na busca pela melhoria do ensino público de qualidade.

É curioso perceber que muitas pessoas ainda vêem a greve simplesmente como resistência aos interesses dos grandes capitais internacionais através de um esforço coletivo. Desde a praça “La greve” na França do século XIX, os ideais humanistas e as conquistas sociais, até o Brasil do século XXI, muita coisa mudou. É ingenuidade crer que os efeitos sociais e institucionais de uma “greve” permanecem os mesmos. Devemos questionar esta metodologia de reivindicação porque, em oposição ao idealizado, a greve no ensino público foi “cooptada” pelo sistema monetário e a cultura do individualismo onde vivemos.

O contexto específico do ano de 2014 traz contra-argumentos importantes. Estamos ainda sofrendo as conseqüências diretas da greve de professores e técnicos nas Universidades por todo o país em 2012: mais precarização do ensino universitário, dificuldades para os estudantes, quase nenhuma conquista efetiva. Ainda no ano passado houveram os protestos sangrentos por todo o país, mostrando o quão indiferente é o governo diante dos apelos do povo. Por fim, este é um ano eleitoral, o que necessariamente imprime em uma greve dessas um caráter político, quer os grevistas se dêem conta ou não.

Na Universidade Federal do Pampa, entre as diversas razões dos técnicos, destacam-se estas preocupações mais locais: antecipação da reposição salarial de 5% (acordada para janeiro de 2015 na última greve!), e o que é tido como “a principal luta da categoria”[1], a redução da jornada de trabalho de quarenta horas semanais para trinta. Outros pontos não são tão enfatizados, pelo menos na mídia. Isso dentro do contexto da região da campanha, que é a parte empobrecida do Estado, onde um salário de um servidor federal contrasta enormemente com o meio onde se insere.

Parte da lógica de que as conquistas dos grevistas irá “melhorar o ensino público de qualidade” indica que as pessoas teriam melhor desempenho no trabalho por terem melhores condições de trabalho. Dinheiro é, essencialmente, valor. Ganhar mais e trabalhar menos é valorização do profissional através do aumento do seu poder aquisitivo. O contentamento pessoal com seu trabalho é uma condição subjetiva e, sim, influenciada pela recompensa financeira. Nesse sentido, um salário melhor define melhor desempenho. É natural, é humano e é muito saudável querer ser valorizado.

Por outro lado, o mesmo contentamento também é influenciado pela alienação simbólica do sujeito em relação ao que ele produz. Em outras palavras, a herança da escravidão formal e da revolução industrial que operam no núcleo do capitalismo: a cultura de que “trabalho é degradante”; alguns afirmam que a palavra vem do latim “tripalium”[2], nome de um antigo instrumento usado para tortura. Nesse sentido, melhor salário não gera melhor desempenho, simplesmente porque trabalhar segue sendo um desgosto, um “mal necessário” para nos sustentarmos dentro do sistema financeiro.

Principalmente em uma instituição de ensino, o valor humano tem um grande peso no valor do desempenho no trabalho. E a hipótese de que melhores salários para servidores públicos reverte em benefício para a instituição pode ser verificada e posta à prova no cotidiano. Basta observarmos as relações entre as pessoas, os recursos disponíveis e o quanto é aplicado em favor da melhoria do trabalho. Ou o quanto do valor humano é demonstrado. Ali, percebemos que apenas poder comprar mais não significa produzir mais ou ser uma pessoa melhor.

Cito um exemplo. Diariamente em meu Campus, vejo estudantes (principalmente, mas alguns técnicos e professores também), utilizando o nosso sistema de transporte público coletivo extremamente precário, em vergonhosas estradas de chão batido. Há professores, técnicos e até mesmo alguns estudantes que dispõem de veículo particular. Quantas dessas pessoas oferecem caronas para os que não dispõem? Não é uma obrigação, mas uma gentileza possível. A ausência dessa gentileza é um indicador sugestivo do valor humano em vista do valor financeiro disponível.

Outro exemplo são os registro de projetos de Extensão, que são uma atividade opcional pouco procurada por técnicos dentro da Universidade. Alguns argumentam que trinta horas são suficientes para o cumprimento de certas funções administrativas. Pergunto então, por que não reverter as dez horas restantes em produção criativa, experimental, dentro da ampla gama de possibilidades que uma Universidade Federal oferece, ainda que precarizada ao extremo? Meu entendimento é que a maioria das pessoas simplesmente não conseguem se relacionar prazerosamente com o seu trabalho. Estão alienadas do valor simbólico e humano do que produzem e podem produzir. Ou seja, trabalham somente porque não nasceram ricos, não pelo valor humano e criativo do trabalho.

Os grevistas deste ano, representados pelo seu comando de greve, definiram que a manutenção da biblioteca não é um “serviço essencial” mesmo ocorrendo as aulas, de modo que os estudantes iniciaram o semestre sem poderem retirar livros na Biblioteca. Quem tem dinheiro, compra o seu livro, quem não tem, tem mais uma precarização no seu cotidiano universitário, pode ser mal-avaliado em provas marcadas por professores que não lidem com a situação real. Isso sem falar no incidente dos erros em renovação do programa de bolsas de permanência, do qual algumas pessoas dependem para morar e comer.

Recentemente, estudantes ocuparam a Reitoria da Unipampa. Ocupações não estão previstas em lei. Eu mesmo discordei dessa estratégia na época. Mesmo assim, pareceram-me bem mais lúcidas as reivindicações deles. Por exemplo, pediam pelos Restaurantes Universitários em cada campus: alimentação, um direito básico e um serviço do qual usufruirão não somente estudantes, como também professores e os técnicos.

Ainda há elementos positivos em uma greve, mesmo que a ferramenta esteja ultrapassada. Três muito significativos são: 1 – abrir um período de discussão e auto-organização entre os trabalhadores; 2 – visibilidade na mídia a respeito da injustiça perpetrada pelo sistema (com marchas e reuniões públicas, por exemplo); 3 – ações pontuais em benefício da população (em Bagé, houve iniciativas muito positivas, doações de alimentos, auxílio a instuições de caridade, etc). A questão é que a greve em si é completamente desnecessária para gerar esses três elementos: 1 – trabalhadores em uma Universidade Federal podem auto-organizar momentos de  discussão no cotidiano de trabalho; 2 – a visibilidade na mídia hoje decorre muito mais de inúmeros outros fatores, em especial as mídias e redes digitais; 3 – ações pontuais em benefício á população podem constituir projetos permanentes dentro da instituição (como os projetos de Extensão mencionados).

Ao invés de evoluir no que tem de melhor, a greve se baseia na metodologia de “causar pressão”. No caso, pressão principalmente sobre os estudantes. Esse funcionamento da greve não prejudica mais o “patrão da fábrica”, mas agride o ser humano com quem convivemos diariamente. É mais ou menos como a lógica dos presídios: todos estamos encarcerados dentro do sistema penalizante, miserável, mas alguns deitam na cama de cima, comem mais, têm acesso a janela e ao celular e, quando ainda assim ficam enraivecidos pela condição de preso, descontam torturando os presos mais fracos. Em uma comparação mais extrema, podemos dizer até que a greve hoje usa a mesma lógica dos senhores da guerra: matar mulheres, crianças e velhos para intimidar o exército da nação inimiga.

Não é a má índole que guia pessoas individualistas, classistas, egocêntricas. É a tristeza por estarem enclausuradas em sua solidão e incapazes de perceber a realidade dos outros ao seu redor. Quem se apega ao mito da greve como um valor inquestionável, quase uma “cruzada sagrada”, está simplesmente desamparado ante o desespero gerado na realidade árida e sombria que persiste, sem saber para onde correr e como reagir.

O que muitos ainda não entendem é que grande parte das melhorias no sistema se dá aqui mesmo, na micropolítica do cotidiano, nas pequenas coisas. Isso não isenta os governos e capitais transnacionais dos crimes macropolíticos contra a humanidade. Isso não significa que devemos aceitar o massacre que o sistema monetário globalizado impõe sem reagir. Significa apenas que reagir uns contra os outros, cometendo pequenos crimes cotidianos por “categorias” distintas, nada mais é do que fazer exatamente aquilo que os dominantes deste sistema desejam que nós façamos. Enquanto corremos atrás do dinheiro e de distinções como necessidades primárias, elas nos despedaçam enquanto categoria única de seres humanos vivos.

“Nossas vidas não são nossas. Do útero à tumba, nós estamos vinculados a outros, passado e presente, e por cada crime e cada gentileza, nós parimos o nosso futuro.” [3]

(*) Técnico administrativo não-grevista no Campus Bagé Unipampa

[1] Mencionado pelo Jornal Folha do Sul em 28/05/2014:

http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2014/05/28/grevistas-da-unipampa-e-reitoria-tem-novo-dialogo

[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Tripalium

[3] “Our lives are not our own. From womb to tomb, we are bound to others, past and present, and by each crime and every kindness, we birth our future.” Cloud Atlas (Alemanha, Tykwer e irmãos Wachowski, 2012)

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