Ano 09 nº 125/2021 – Ecos de gritos de revolução

Por Anthony Colares

Ao ingressar no curso de Letras e passando a frequentar ambientes mais voltados tanto para os estudos da linguagem quanto para  a literatura, deparamo-nos com discursos de que nada na linguagem se cria, tudo está em constante mudança, o que vivemos, falamos, lemos e assistimos hoje são frutos de muitas ações do passado. A cultura se vê agora atingida frente a adaptações e apropriações de conteúdos de outrora.
Obras literárias, lendas antigas, de séculos ou milênios atrás agora estão sendo readaptadas, quem diria que o Cérbero, cão de três cabeças que guardava o portão do submundo na mitologia grega iria aparecer em algum lugar dentro do castelo de Hogwarts, ou que uma série adolescente como Riverdale poderia trazer referências tão clássicas em seus diálogos como Shakespeare ou Eurípides. 

Atualmente, é incomum ver alguém que tenha tido um contato tão profundo com a cultura e arte da sociedade ocidental de forma tão profunda que consiga discernir a importância destes trechos dentro da cultura atual. Muitas produções se inspiram quase que completamente em obras clássicas, culturas antigas, civilizações tão pouco desgastadas e isso tudo testemunhamos, ainda que de formas diferentes, nos dois lados de nosso planeta, ocidente e oriente, nada escapa à mudança, passagem do tempo e do conhecimento. Nossas mentes continuam como uma extensão da rede de pessoas que viveram há centenas de anos atrás, a própria teoria do dialogismo bakhtiniana defende de que nenhum dos enunciados pronunciados por nós, sujeitos é original ou é dito pela primeira vez, tudo que os nossos antepassados praticavam, o que eles liam, recitavam e cantavam continua pulsando em nós, a partir daí, chegam nas produções atuais.
Hoje em dia, é mais eficiente para um sujeito de classe média assinar um pacote de streaming e lá ter acesso a vários filmes e séries, do que comprar livros e ainda se dar ao trabalho de lê-los, sendo que um filme adapta a história em duas horas ou menos, sendo assim, não se tornou uma questão de intelectualidade e sim de praticidade. Todos nós precisamos de arte, não há como viver sem ela, na música, na televisão, nos videogames, sempre foi uma aliada daqueles seres que gostam de sonhar com algo diferente, que precisam sonhar. Pisamos firmes neste terreno conquistado por nós, porém, eu não nego uma certa angústia ao ver tais processos acontecendo sem que aqueles que desfrutam de seus resultados tenham qualquer consciência de que os direitos que muitos tem agora se ergueu a partir de um trabalho secular.
Não se trata apenas de uma arte que serviu para expressar resistência, de um mero entretenimento, mas do próprio conhecimento humano, do funcionamento social, de questões ideológicas, sentimentais, filosóficas de crença e comportamento que inspiraram as mais variadas figuras que hoje são célebres autores clássicos. Quando aponto para esses autores, não se trata apenas de glória ou talento, mas das ideologias, das crenças mais desenvolvidas, impressas, ditas por eles mesmos, os modeladores deste produto em constante evolução, sem roteiro escrito, sem adaptações, apenas palavras. Não há mal em lidar com as adaptações que hoje circulam, elas têm um valor social tão importante quanto essas outras, pois são elas o caminho para algo mais específico, figuram o ponto de partida, um objeto acessível para aqueles que não dispuseram de muitos privilégios na vida. A arte precisa ser vista, precisa ser notada, nela estão dezenas de anos de experiência humana retratada das mais variadas formas, elementos e fatos, os quais precisamos estudar para combater muitos dos problemas que nossa sociedade herdou de gerações passadas. A arte vem, provavelmente, como um bom caminho para entender e dar visão de toda a história humana.
O que vemos hoje, filmes, séries, vídeos, jogos e as músicas em nossas playlists são apenas a ponta de um iceberg que precisa estar a vista para que possamos entender que nossa história é bem mais profunda, e que por baixo dessa ponta existem centenas de metros de gelo onde estão congeladas as mais infindas obras de artes que expressam os sentimentos e lutas das mais variadas tribos ao decorrer dos séculos de suas existências. Entender que eles transcendem apenas o ato de lazer e que carregam um significado histórico consigo é uma interpelação da história e de ideologias que nela se formalizaram, é preciso buscar mais a fundo, sair da superficialidade, ousar questionar e pesquisar o porquê. Não se contentar com tautologias é basicamente um dos fatores que norteiam a arte. 

Essa transição traz novas dificuldades com as quais muitas famílias e principalmente as escolas não estavam habituadas a lidar, ainda que haja valor em cada meio de entretenimento, cada um deles leva consigo grandes dificuldades. Confesso que esse período me deixa com a impressão de estarmos numa era do imediatismo, quão mais fácil seria se pudéssemos digeri-lo? Brincadeiras à parte, meu maior medo, em plenas duas décadas de vida, é de que aquilo que escolhi como minha carreira, o único caminho que acreditei como um libertador, esteja sendo ignorado de forma inconsciente.
Nossas músicas, nossas histórias e sinais de resistência estão se resumindo a alegorias, centenas de livros na estante de um líder político que o próprio povo duvida que ele os tenha lido ao menos a metade.

Como universitário pude presenciar diversos movimentos dos quais acredito firmemente que são necessários para que as comunidades em suas mais variadas identidades sejam respeitadas e acreditadas. Não restam dúvidas para aqueles que conhecem ou viveram os horrores de um regime militar que estes atos surgem de mentes atrasadas que floresceram naquele campo pútrido regado a sangue e fertilizado com cadáveres que jamais serão identificados. Tirar a oportunidade de conhecer a história, e o fazer por meio da arte é um meio extremamente eficiente de fazer com que nós esqueçamos até que ponto a crueldade de certas pessoas vai para manter um império político e discriminatório, não há lógica para eles em mudar um sistema em que os beneficia de forma tão despudorada.

O ser humano não consegue viver sem a arte, precisamos dela para nos fazer sorrir, para nos divertir, para nos fazer ter uma esperança em tempos tão sombrios, temo que essa situação de desconhecimento histórico-político se beneficie das formas de entretenimento em ascensão, contudo, espero que seja apenas um temor precoce, e que tudo isso não passe de uma insegurança minha a respeito daqueles que como eu, acreditam no potencial da humanidade e da arte que dela nasce e transita constantemente, sendo o sopro que mantém a chama da resistência contra a opressão.  O que posso afirmar é que temendo ou não, irei insistir no papel de educadores e daqueles que oportunizam o conhecimento da arte, pois ela sempre será a flor que desabrocha nas fissuras do concreto.

A inteligência é o farol que nos guia, mas é a vontade que nos faz caminhar.

Érico Veríssimo

Anthony é graduando do curso de Licenciatura em Letras – Português e Literaturas da Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA/Campus Bagé-RS). Atualmente está no 5º semestre. Em 2018, ingressou como bolsista no Programa de Educação Tutorial – PET Letras/Bagé. Nesse projeto, desenvolveu pesquisas sobre movimentos de resistência na educação brasileira. Suas áreas de interesse são os Estudos da Literatura, Literatura Clássica, Análise do Discurso, Poesia e Escrita.

“Esta é a coluna do PET-Letras, Programa de Educação Tutorial do curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, do campus Bagé. O programa, financiado pelo FNDE/MEC, visa fornecer aos seus bolsistas uma formação ampla que contemple não apenas uma formação acadêmica qualificada como também uma formação cidadã no sentido de formar sujeitos responsáveis por seu papel social na transformação da realidade nacional. Com essa filosofia é que o PET desenvolve projetos e ações nos eixos de pesquisa, ensino e extensão. Nessa coluna, você lerá textos produzidos pelos petianos que registram suas reflexões acerca de temas gerados e debatidos a partir das ações desenvolvidas pelo grupo. Esperamos que apreciem nossa coluna. Boa leitura”.

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