Ano 08 nº 078/2020 – O lugar de fala de cada um de nós / Coluna do Saulo Eich
Fonte: Correio Braziliense
Nos últimos anos, a expressão que dá o título do meu texto de hoje se espalhou, principalmente na comunidade virtual a partir do debate sobre “Qual é o lugar de fala de cada um de nós?” Trago esse conceito hoje, considerando que o mês de junho registra a data destinada a olhar de maneira mais atenta para a questão LGBTQ+. No domingo, 28, assinala-se o dia do orgulho LGBTQ+. E daí, voltamos à questão: qual o espaço que a população não LGBTQ+ tem, e pode ter, para problematizar, conscientizar e contribuir quando o lugar de fala nesse sentido é daqueles que vivenciam e experienciam o que é fugir da orientação sexual entendida como padrão pelos engessamentos sexistas, pelo modelo binário, pela cultura do machismo, e pela soma de tudo o que constrói o perfil do preconceito contra essa parcela da população.
A ideia que o conceito de lugar de fala nos trás é de que trata-se de uma percepção vivencial e não um raio-× de uma parcela específica da população que está dentro de um estudo ou de um livro, por exemplo. O lugar de fala corresponde então, ao espaço onde estou situado e a tudo pelo que passo e passei ou que passa e passou por mim. É a minha vivência. A propriedade para eu falar sobre o que sinto a partir do que vivenciei. Mas, se pararmos pra pensar, rapidamente entendemos que a disposição que debates em torno de temas fundamentais para a sociedade acontecem a partir de um modelo onde uma maioria, leia-se homens, heterossexuais e brancos, propõe, legisla e conduz resoluções para minorias, leia-se negros, mulheres, lgbtqs. E nesse sentido, justifica-se a importância da representatividade nos mais variados espaços sociais, inclusive na política.
Mas, há uma distorção importante de ser entendida quando pensamos no lugar de fala: entender que o meu lugar enquanto lgbtq, ou o meu lugar enquanto mulher, ou o meu lugar enquanto negro e negra não tira o direito de que os demais indivíduos falem e contribuam. Todos temos o direito e, mais do que isso, o dever, de problematizar questões que são caras demais pra nossa sociedade, como o preconceito racial num país que escravizou negros, como o machismo e a violência contra a mulher, num país onde, em 2018 por exemplo, 1,6 milhões de mulheres foram espancadas por homens, ou como a lgbtqfobia que matou 1 lgbtq a cada 26 horas no Brasil em 2019. Então, é nítido que há uma necessidade imensa de conscientização e combate a violências e discriminações por parte de todos, sem distinção.
O fato é que, quando um homem, heterossexual, branco, valendo-se muitas vezes de suas percepções machistas, religiosas, e de seu impulso autoritário e agressivo dispõe sobre que lgbtqs são passíveis de serem curados através de um processo terapêutico, essa pessoa está usando de seu direito de se posicionar sobre a questão de maneira equivocada, perigosa e nociva. Está fazendo errado. E quando um profissional da saúde acolhe esse discurso e diz que sim, que a cura lgbtq é algo realizável, essa pessoa também está usando de seu direito de se posicionar sobre a questão de maneira igualmente equivocada, perigosa e nociva. E aqui vale salientar que não existe processo de cura de questões que não são entendidas como doença. Essa sucessão de intervenções desastrosas vindas de indivíduos que não possuem orientação lgbtq e nem as vivências que isso trás, contribui para que absurdos ganhem força e se espalhem no discurso popular. Podemos usar como exemplo a própria disseminação da cura gay, muito discutida a um tempo atrás, ou a ideia de que casais homoafetivos não podem adotar uma criança, ou que discutir sexualidade e gênero no espaço escolar é uma ameaça ao desenvolvimento saudável dos alunos e alunas.
Desse modo, podemos entender que há sim um espaço de fala para todas as pessoas e sobre todas as questões. Mas nem sempre o nosso lugar de fala tem caráter de protagonismo. Às vezes somos coadjuvantes. E ser coadjuvante no debate sobre questões tão importantes como as mencionadas aqui, pode significar um papel fundamental na contribuição por uma sociedade menos machista, menos racista e menos lgbtfobica. Do contrário, quando tomamos o protagonismo de debates que giram em torno de questões as quais não possuímos a experiência vivencial, com muita facilidade acabamos por fortalecer os discursos discriminatórios, por justamente ignorarmos o lugar onde o outro está, a vivência que esse lugar traz ao outro e a propriedade de expôr o que sente e vive enquanto parte de uma minoria, que só um negro, uma mulher ou um lgbtq possui. Todos temos um lugar de fala, e todos temos um papel importante diante do lugar de fala do outro, basta utilizarmos do entendimento de que somos protagonistas de nossas vivências e coadjuvantes das vivências do outro.