Ano 07 nº 020/2019 – Da vida compartilhada com meu filho
Por Clara Dornelles
Professora UNIPAMPA
Preâmbulo
Ele estava fazendo uma prova de ciências que a mãe tinha achado na internet. A mãe sempre preocupada em ensiná-lo a aprender a fazer provas do jeito como a escola quer, apesar de saber que a maior parte do conhecimento não cabe numa avaliação desse tipo. A pergunta era: “Quais são os fatores relacionados a uma boa saúde?” Ele marcou: “Lazer, dinheiro e família”. A mãe insinuou dúvida. Ele disse, sem titubear: “Ah, mãe, tu não ia querer que eu marcasse bem-estar físico, social e mental, né? O que adianta tudo isso se não tiver família? Como vai ter tudo isso se não tiver família?” A mãe respondeu com os olhos cheios de amor e lembrou dos dias que o conheceu…
Encontrei meu filho a primeira vez no Whatsapp
Eu estava à espera do meu filho, depois de muitos anos, ao lado do meu ex-companheiro, quando li no grupo da busca ativa** do Instituto Amigos de Lucas (IAL) o perfil de uma criança para adoção: 8 anos, negro, região sudeste. Esse não era o perfil originalmente definido para nossa adoção. Era um perfil que resultava do diálogo solidário, amoroso e resistente iniciado em maio de 2016 com a nossa cegonha Rosi Prigol e seu companheiro, Gilberto Prigol, que conheci em uma roda de conversa organizada pela Coordenadoria da Mulher de Bagé em ocasião do dia das mães. Era o perfil que me tornaria mãe e me faria nascer de novo, junto com o meu filho. Quando sua primeira foto chegou, vi um menino sorridente, mas tão sorridente, que os olhos quase se fechavam. Eu me perguntava: como pode caber tanto sorriso numa criança só?
Foi desse sorriso que lembrei no dia da prova de ciências, quando meu filho falou da importância da família. Me lembrei também das primeiras fotos e vídeos que mandamos para ele, de tudo o que significaram os dois meses que tivemos que esperar entre o dia que soubemos que ele buscava uma família e o dia em que estaria preparado para nos ver. Foram dois meses de negociações com a comarca, de troca de mensagens com a assistente social e a psicóloga responsáveis por ele, de construção de primeiros vínculos e afetos. Até o dia em que nos vimos fora da tela do celular.
Com meu filho em julho de 2018.
Quando encontrei meu filho pela segunda vez
Depois de muitas horas de viagens chegamos à cidade do pequeno sorridente. Um calor sem igual, uma cidadezinha menor do que a pequena Bagé. Mas tudo ali parecia tão suficientemente grande… Ele nos esperava na casa da mãe acolhedora. A melhor calça jeans, tênis e camiseta. Estava lá com um sorriso então tímido. De perto, dava para sentir melhor seus olhos e ver horas de artes de papelão (ele brincava de fazer e jogar aviões de papel). Agora podia ver sua vozinha ao vivo, sentir seus “uai”, ouvir seu cheiro e tocar de perto suas mãozinhas pequenas. Sim, uma confusão de sentidos… É assim que a gente se sente.
Esta história não vai ter fim
De um interior ao outro, meu filho começou a ter consultas com um novo psicólogo. Foi com Saulo que aprendi o significado do sorriso do meu filho: resiliência. E foi a partir daí que comecei a vivenciar também um pouco do efeito desse tipo de resistência resistente. É quase como se eu estivesse crescendo ao mesmo tempo que meu pequeno filho, abandonando uma infância de apegos, excentricidades e egoísmos. Não sei se um filho transforma suas mães e pais. Sei que meu filho provocou (e ainda provoca) minha transformação. Sei que mães que amam são por seus filhos e filhas transformadas para sempre.
Quando soubemos da morte da Wendy, ele me viu chorar e durante vários dias falou sobre como seria se eu o perdesse. Como seria se ele ficasse sem mim. É um medo gigante que toma conta da gente. Mas o que nos conforta é a certeza de que nossa história nunca vai ter fim. Porque nossos corações estarão sempre batendo juntos, fazendo a gente lembrar dos momentos difíceis que nos tornaram mais fortes. Daqueles sorrisos que estão gravados, mas tão gravados, que nem a fotografia os revela tão bem. Porque a fotografia mostra a imagem, mas a nossa memória traz junto o cheiro do sorriso no rosto, o peso do corpo no colo, o aperto da textura na pele. Traz a certeza de que nosso vínculo continuará, porque é de amor; é de resiliência; é de gratidão pelos encontros de vidas.
A mãe de todas as mães, Rosi Prigol, com a pequena Wendy, adotada aos 3 meses e morando no céu desde o ano passado, quando a leucemia a tornou anjinha, aos 9 anos.
*Breve escrita em gratidão à Rosi Prigol e Gilberto Prigol, por todos os sorrisos e desafios que me trouxe a vida de mãe. Rosi e Gilberto são do Instituto Amigos de Lucas (IAL), organização não governamental que apoia a adoção e é parceira do Grupo de Apoio à Adoção de Bagé (GAAB) desde seus primeiros passos. Este texto foi originalmente publicado em livro em homenagem à Wendy Prigol.
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