Sobre o ouvir nosso de cada dia

Valesca Brasil Irala

Ouvir. Há nesse verbo um mistério. Uma filosofia. Um quê de problema. Há nesse verbo um entroncamento, uma onda gigante, um exército esperando a ordem de atacar, um tesouro a ser encontrado.  Cedo ou tarde, por vontade própria ou pressão externa, todo o ser  humano terá que entender  os sentidos mais subterrâneos e os enigmas existenciais  contidos no  verbo  ouvir.

Por aí há quem diga que ouvir é, essencialmente, a realização mecânica de processos fisiológicos e físicos. A maioria dos seres humanos nasceria plenamente apta a ouvir. Ouvir, nessa perspectiva, independe da vontade humana. Ouvir seria um atributo constitutivo do humano, sobre o qual não haveria maiores razões para criarmos profundas indagações. Mesmo assumindo essa simplificação como verdadeira, sabemos que há um número grande de pessoas que nunca puderam escutar   som   algum ou que, ao longo da vida, perderam   paulatinamente a capacidade fisiológica da audição. O que defendo aqui como “ouvir” é permitido mesmo a essas pessoas que não possuem (ou perderam) essa capacidade fisiológica.  

Todos nós, ditos “ouvintes”, já escutamos de alguém aquela célebre   advertência: “Não adianta se fazer de surdo”. Mesmo que não seja bem assim (porque decididamente não é um fator fisiológico que determina aqui a compreensão que quero dar sobre o verbo “ouvir”), essa advertência, recorrente no senso comum, diz muito sobre nós.  Sobre todos nós. Não interessa se, biologicamente falando, sejamos surdos ou ouvintes.

Ouvir, aqui, contempla a singularidade das situações que marcam a vida humana a cada dia. Podemos, sem querer, deixar de ouvir os sinais de um corpo enfermo; podemos deixar de ouvir o chamado de um amigo em apuros; podemos deixar de ouvir as vozes daqueles que  quase ninguém quer ter por perto (e são muitos); podemos deixar de ouvir um latido de um cachorro abandonado agonizando; podemos deixar de ouvir os conselhos daqueles que nos amam; podemos deixar de ouvir tudo o que talvez nos tire um suposto bem-estar, mas, ainda que neguemos tudo o que ouvimos aqui e acolá, há um sujeito interno insistente que inviabiliza todos os desejos mais profundos de querermos “nos fazer de surdos”.

O ouvir profundo é, em síntese, um eco de nós mesmos. Um eco de nossas relações   com o mundo e, tal como o eco, vive se repetindo. Não será nunca uma mera coincidência esse conjunto de repetições. Só ouvindo de novo as mesmas lições é que podemos ter a certeza de que aprendemos alguma coisa. O ouvir profundo desfaz os efeitos das compreensões limitadas, reintroduz a vontade adormecida do acerto, desenterra as raízes da árvore dos traumas, reacende o desejo de continuar lutando…e crescendo…e ouvindo…todo o dia…todo o tempo…para sempre…

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