Nas tuas mãos, de Inês Pedrosa


            Nas tuas mãos, de Inês Pedrosa e a tessitura memorialista de uma Portugal do Século XX através do olhar de três vozes femininas. 

           A obra, Nas tuas mãos, publicada no ano de 1997 e vencedora do prêmio Máxima de Literatura em Portugal, é o terceiro livro de Inês Pedrosa, célebre autora portuguesa, que conta com a publicação de diversos títulos, dentre eles Os Íntimos (2012), que também foi premiado. Nele, durante sua narrativa, temos a memória de um país que é revisitada através da literatura, nesse caso memorialista, que carrega consigo narrativas que reverberam uma Portugal do século XX, navegando pelas angústias, receios e complexibilidades das personagens principais que enfrentam e se deparam com uma crise da identidade cultural e social bastante forte. Evidentemente, no romance de Inês Pedrosa não seria diferente. Na narrativa em questão, acompanhamos três gerações de mulheres, três vozes femininas que atravessam o século XX em Portugal, sendo elas, mãe, filha e neta, que contam suas histórias por meio de um diário, de um álbum de fotos e de cartas. 

            A autora do livro, Inês Pedrosa, como é conhecida, nasceu em 1962 em Coimbra. A portuguesa, além de célebre escritora também é tradutora e jornalista formada em Ciências da Comunicação, na Universidade Nova de Lisboa. O seu primeiro texto literário foi publicado quando ela tinha apenas 12 anos de idade em uma revista portuguesa. Após receber o prêmio Máxima de Literatura pelo livro Nas tuas mãos, em 1998, prêmio esse que é exclusivamente destinado a escritoras mulheres; em 2003, após o lançamento do livro, Fazes-me falta, a autora foi consolidada como uma das principais romancistas da atualidade, recebendo o prêmio Máxima de Literatura, novamente, pela publicação da obra, Os íntimos (2010). Além de continuar lançando diversos títulos, ela também possui sua própria editora – Sibila – que é dedicada a ensaios femininos. Atualmente suas obras vêm sendo traduzidas para diversas línguas, bem como o inglês, francês, italiano, croata e alemão. 

           Adentrando, então, no romance, Nas tuas mãos, nele iremos acompanhar a história de três mulheres da mesma família por meio de três gêneros diferentes que possuem um caráter muito intimista e até mesmo confessional. Jenny, a mãe, narra sua história através de um diário, Camila, a filha, através de um álbum de fotografias, e Natália, a neta, através cartas. Juntas elas tecerão uma colcha de retalhos não somente de suas histórias, mas também de fragmentos da história de seu país, Portugal. Essa é uma das características que se despertam marcantes durante a leitura: há uma preocupação na contextualização histórica factual; somos apresentados não tão somente a individualidade de cada personagem, mas também podemos construir o imaginário de uma Lisboa portuguesa através do século XX, nos anos 30, 60 e 80, portanto, suas transformações estarão intrínsecas ao texto.  

           O texto acumula dados e relatos de acontecimentos reais, apresentando-os por meio de sua intertextualidade, que funciona como parte da memória cultural daquela sociedade, prestando a atenção no íntimo da construção da identidade social e cultural de um país, de modo a contribuir para que a história não caia em esquecimento, estabelecendo, dessa forma, um diálogo crítico para com o mundo. Essa capacidade de relacionar a literatura à memória social, chamaremos aqui de “lugares da memória” que, como Luísa Marinho Antunes, Doutora em Literatura Comparada/Literatura Portuguesa e Brasileira pela Universidade da Madeira (UMa), afirma em A construção da memória cultural por meia da literatura: alguns aspectos: 

Partindo do pressuposto de que as memórias são partilhadas entre gerações e através destas e constituem o produto de atos públicos de recordação, usando diferentes mídias – narrativas, imagens, museus, monumentos, juntos criando e suportando “lugares de memória” –interessa, sobretudo, compreender os vários processos utilizados pela literatura para a criação desses “lugares”. Isto é, como contribui para a criação de uma “dinâmica memorial” num processo comunicativo complexo, em que as imagens de passado se cruzam e transformam. Os textos literários (principalmente dos géneros crónica, diário, autobiografia, épica e romance histórico) poderão, apreendidos dessa maneira, funcionar como forma privilegiada de construção social da memória, interpretando uma série de papéis na sua formação (ANTUNES, 1990, pag. 17). 

           A tessitura memorialística tem início com a primeira personagem que nos deparamos, Jenny, a mulher da primeira geração, que em um fluxo de memórias em seu diário fala de seu casamento com um homem homossexual, e sobre a necessidade de manter esse fato em segredo, não tão somente pelo fato da sociedade conservadora portuguesa da década de 30 subjugar o triangulo amoroso não convencional no qual ela estava inserida, mas também para proteger seu companheiro, Antônio, de sofrer qualquer forma de preconceito, como a homofobia que era predominante naquela época.  

           Há de se deixar claro que o amor de Jennifer por António era insólito e inquestionável, à custa desse amor ela se mantém fiel a seu marido e por sua vez ao companheiro dele, Pedro. Entretanto, ela não faz somente isso, ela cria a filha de Pedro, que a teve em um caso com uma judia francesa. No início do romance a avó nos fornece informações sobre sua adolescência no internato, como ela observava as meninas se apaixonando por homens fardados, a perda de seu pai que nunca conheceu por conta de sua morte em 1917, onde ela menciona que ele teria morrido para “o bem de uma Europa inexistente” (Pag. 17) e, assim ela conta a origem e sua união com Antônio, bem como sua relação com Pedro.  

Tu, que nem sequer olhavas para uma mulher, tinhas-me escolhido para viver ao teu lado uma vida inteira. O sexo que eu desconhecia não podia roubar-me o êxtase desta aventura. Permaneceria tua namorada, cúmplice do teu amante (PEDROSA, 2005, p. 19).  

            O imaginário acerca da história de Portugal no século XX ao longo da leitura vai se constituindo. No relato tão fervoroso dessa primeira personagem, essa Portugal do século XX é marcada por diversos conflitos como a Ditadura nacional, o Estado Novo, a Guerra Colonial Portuguesa, entre outros. Essa estória toma forma no diário de Jenny, quando ela crítica o quão Portugal gosta de criar heróis, como na passagem que segue:  

Nem os escombros de duas guerras mundiais num só século conseguiram abrir-nos os olhos para o risível valor dos nossos segredos, António. Nem sequer nos atrevemos a subscrever a verdade que o nascimento de Camila nos apontava. Não temos qualquer moral para criticar a moral da geração dela. Espezinhámos o ser a favor das aparências do poder, ela espezinha as aparências para encontrar o poder de ser. Uma peça de teatro substitui outra, e as mulheres sobem à boca de cena para repetir esse ancestral vício masculino da construção de heróis (pag. 42).  

           Essa crítica continua ecoando, agora já estamos olhando para década de 60, a Ditadura Salazarista domina Portugal e em sua narrativa, Camila, filha de Jennifer, é presa por distribuir panfletos que eram considerados controversos na época. Ela permanece na prisão por um mês, e como nessa narrativa um dos pontos marcantes é a transformação dos sentimentos, os conflitos internos e psicológicos dessas três vozes, Jenny nos conta como Camila era vívida até esse momento. A partir das várias lembranças que possui, somos levados até a ditadura:   

Creio que Camila poderia ter sobrevivido intacta no que era se, ao longo daqueles dias de tortura, Carlos agisse como um ressentimento em vingança. Deitada no meu colo, de olhos no tecto, com uma voz branca que já não era a dela, Camila disse-me: “Acho que o pior de tudo, Jenny, era a calma com que ele acendia os cigarros, sorrindo e repetindo que nada tinha contra mim, que não era nada de pessoal, que se limitava a cumprir o seu trabalho.” Pediu-me que não lhe perguntasse mais nada. A partir daí, parecia sonâmbula: tentávamos animá-la, arrastá-la para espetáculos ou passeios, mas ela só dizia três palavras: não faz sentido (Pag. 69).  

           No segundo momento deste romance conhecemos o álbum de fotografias de Camila, que nos apresenta uma Lisboa cinzenta marcada por uma Portugal dominada pela ditadura salazarista. As marcas psicológicas apresentadas nessa personagem demonstram um emocional conturbado, muitas vezes melancólica e triste, o que representa a sociedade Lisboeta da época, mães que perderam seus filhos que foram para guerra, viúvas que perderam seus maridos soldados, crianças que nunca conheceram seus pais, tudo consequência da ditadura. Sua desilusão para com a oposição também é clara, principalmente denotando o machismo que, naquela época, era intrínseco até mesmo nos campos “progressistas”, dizia Camila: 

Qualquer forma, julgo que me atirei para a linha da frente do perigo por desilusão. Os homens do Partido paternalizavam as camaradas, queriam-nas castas e devotadas na retaguarda das actividades masculinas, capazes de cozinhar e remendar calças na sombra doméstica da clandestinidade (Pag. 108). 

           O olhar dessa personagem acerca da realidade vivenciada nesse período é registrado através de imagens fotográficas que dissecam a realidade de um período tão difícil, ela nos apresenta ao longo de sua caminhada Moçambique, durante a guerra da independência. Como jornalista deveria mostrar a Portugal o grande feito dos jovens no conflito na África, e acaba nos mostrando a grande pressão que os jovens sofreram ao serem obrigados a deixarem seu continente para enfrentar a guerrilha. Até que em sua incursão em território africano ela acaba por conhecer o guerrilheiro Xavier e, antes dele ser assassinado, Natália é concebida, para que assim conheçamos a representante da terceira geração da tessitura portuguesa do séc. XX que a obra nos apresenta. 

           Todas as informações que nos são apresentadas através de Natália são dadas através das cartas que ela envia a Jenny, a relação de avó e neta, mesmo que a distância, é nitidamente intima e próxima, relação essa que não se materializa entre a mãe e a filha, Camila e Natália.  

           Tratando-se da década de 80/90, que é o período que avó e neta trocam as cartas, podemos perceber o exemplo de como as relações se constituem na atualidade, a comunicação mais distanciada entre pais e filhos, as relações mais superficiais tanto de forma amorosa quanto em amizade. Um dos pontos que constituirão a memória cultural, é quando Natália conta sobre a sua busca sobre sua própria história, como quem foi seu pai e como ele morreu e é nesse momento de procura indo até a África que podemos observar diversas críticas sobre a violência e os males que Portugal causou aos países do continente africano e que ainda reflete no pós-guerra, onde ao chegar em Maputo ela afirma:  

Não sonhava que pudesse existir tanto sofrimento. O quotidiano de Moçambique é apenas inimaginável. À chegada, por detrás dos vidros de um automóvel, Maputo apresenta-se como capital de um possível futuro, entretanto arquivado, experiência suspensa, envolta nas cores esfaceladas de um passado irreal. Quando se pára para olhar de perto, o cenário romanticamente surreal adquire os contornos dantescos da hiper-realidade (Pag. 122).   

           E é nessa viagem que se completa o ciclo da terceira geração de mulheres dessa família, com Natália mais sóbria e resolvida consigo mesma após tantas transformações em sua vida. Isso por fim lhe dá forças para buscar o grande amor, em contraponto a sua destinatária, já ausente, Jenny, que ao final da narrativa completou seu ciclo e faleceu. 

          Nas tuas mãos é uma obra instigante sobre o íntimo e a subjetividade de três mulheres, é sobre a transformação dos sentimentos dessas protagonistas, mas também é sobre a transformação de uma sociedade sob o olhar e vivência dessas mulheres, de modo a ser através da tessitura que essas vozes femininas – a se completarem e dialogarem entre si – construírem com grande minúcia o imaginário de Portugal no Século XX, trazendo dos aspectos mais lúgubres até os mais sóbrios sobre ele.  

  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  

ANTUNES, M. A. A construção da memória cultural por meio da literatura:alguns aspectos, 1990. In:<https://www.academia.edu/3604910/

A_constru%C3%A7%C3%A3o_da_mem%C3%B3ria_cultural_por_meio_da_literatura_alguns_aspectos> .

PEDROSA, Inês. Biografia, 2016. In: <http://www.inespedrosa.com/biografia.html> .

PEDROSA, Inês. Nas Tuas Mãos. São Paulo: Editora Planeta, 2005. 

ene0

Deixe seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Junipampa