As ironias do dia do trabalhador / Coluna PET Letras

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“Esta é a coluna do PET-Letras, Programa de Educação Tutorial do curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, do campus Bagé. O programa, financiado pelo FNDE/MEC, visa fornecer aos seus bolsistas uma formação ampla que contemple não apenas uma formação acadêmica qualificada como também uma formação cidadã no sentido de formar sujeitos responsáveis por seu papel social na transformação da realidade nacional. Com essa filosofia é que o PET desenvolve projetos e ações nos eixos de pesquisa, ensino e extensão. Nessa coluna, você lerá textos produzidos pelos petianos que registram suas reflexões acerca de temas gerados e debatidos a partir das ações desenvolvidas pelo grupo. Esperamos que apreciem nossa coluna. Boa leitura”.

Por Anthony Colares e Gabriel Martins

Mais da metade do dia, ou precisamente, dezessete horas, era o período que um trabalhador comum de Chicago dedicava aos afazeres laborais no ano de 1886. Nesta mesma cidade, no dia primeiro de Maio do mesmo ano, ocorreu o marco do início das manifestações dos trabalhadores que exigiam a diminuição da carga horária de trabalho para oito horas diárias, o que veio a culminar na repressão policial que ocasionou a morte de operários e líderes do movimento. Estabeleceu-se então, no ano de 1889, através do Congresso Operário Internacional, que o primeiro dia do mês de Maio seria o dia do trabalhador.

Apesar de toda a resistência operária através das décadas, as más condições de trabalho e as situações de exploração são características que se fizeram intrínsecas ao âmbito laboral do sistema econômico capitalista. Toma-se como exemplo o processo chamado de uberização; nele, o trabalhador se vincula a um aplicativo digital, e o mesmo há de repassar uma parte do lucro oriundo de seus serviços para o próprio aplicativo. A ideia em si é atrativa: você pode se tornar um “empreendedor” sem muita burocracia, e a renda alcançada depende única e exclusivamente do seu esforço, ou seja, se alinha com o discurso meritocrático que tomou força no país, no decorrer dos últimos anos. “Quem quer consegue”, dizem.

Entretanto, na prática, a ideia se torna complicada e, muitas vezes, fatal. Como no caso do entregador Thiago de Jesus Dias, que morreu enquanto realizava entregas pelo aplicativo Rappi. A família de Thiago alegou que ele trabalhava cerca de doze horas por dia, de segunda a segunda, o que pode ter relação com o AVC que causou sua morte. E assim se foi, sem direitos ou sem que a empresa dona do aplicativo desse algum tipo de amparo a sua mulher e filha de seis anos. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego. 

A principal diferença dos muitos trabalhadores contemporâneos de Chicago, em 1880, é sua classificação. Chamá-los de empreendedores é ignorar a hierarquia do lucro e jogar a responsabilidade do desemprego no colo do trabalhador. Tornou-se comum, nas últimas décadas, lidar com trabalhadores independentes, ou “free lancers”. Uma parte deles hoje em dia, apesar de não ser contemplada com direitos trabalhistas, é bem remunerada e se encontra em ascensão com a evolução digital. Tornou-se comum encontrar empresas ou microempresas de programação, marketing, entre outras formas de trabalho, que têm a ver com a mídia digital. Entretanto, há uma parcela da nossa sociedade, e uma bem significante, que não imaginamos pelo que passa ou a que se submete apenas para ter o que comer. Essa é a realidade de muitos entregadores de aplicativos como Ifood, Rappi e até mesmo de serviços de locomoção como o Uber e o 99. Podemos também abordar outros tipos de trabalhadores, que se tornam ainda mais independentes, pois contam apenas com a própria vida social para divulgação do seu trabalho. Estes casos são mais comuns quando os trabalhadores que os empenham não desejam depender tanto de mídias digitais. É o caso de trabalhadores que consertam nossas máquinas de lavar-roupas, geladeiras, carros, aqueles que limpam nossos jardins, entre outras ocupações

Sabemos que o país, que caminha para uma espécie de regência neoliberal, faz tudo para driblar as normas da CLT, e muitas empresas procuram a abstenção dos vínculos empregatícios exigidos pela tal, embora recebam a parcela significante do ganho de seus empregados. Um exemplo bem expressivo que já citamos é o próprio Rappi ou Ifood. Podemos considerar que o Brasil, ou pelo menos, a elite brasileira, não respeita ou tem qualquer sentimento de empatia com seus funcionários, o que é totalmente irônico e imoral, uma vez que eles dependem tanto de seus funcionários como seus funcionários dependem de seus salários resultantes de sua força de trabalho. E, aos que em teoria não dirigem empresas ou grandes comércios, cabe falar e problematizar sobre isso, no intuito de mostrar a todos que, enquanto uma parcela significante da população vive alienada quanto às condições precárias de trabalho. O “cara” que traz teu lanche ou que te leva para uma festa está passando por uma situação financeira complicada e, muitas vezes, extremamente indigna para um ser humano. Precisamos falar desses trabalhadores, invisíveis aos olhos da sociedade.

Dentro de um país, onde tendências neoliberais tendem a crescer, e o sentimento de empatia passa tão longe das vidas de muitos indivíduos, torna-se difícil entender quem são esses trabalhadores. Os entregadores sentem medo, um medo muito maior que o nosso, pois estamos confortáveis em nossas casas. Alguns estão desempenhando suas atividades à distância, outros estão apenas esperando esse período difícil acabar para poderem visitar alguns entes queridos. Esses trabalhadores que marcam presença na rua, independente do clima, estão com medo porque não têm escolha. Estão com medo, pois estarão expostos de forma irrestrita ao vírus. Muitos deles, sem contar com equipamentos de proteção adequados estão com medo do que pode acontecer com eles se pararem de trabalhar. São eles que se expõem no perigoso ar da rua para abastecer nossas despensas e necessidades básicas, e fazem isso tudo para suprir suas necessidades básicas.

Realmente, nossa economia pode estar em risco sob toda essa pressão. Entretanto, não podemos esquecer que são as próprias pessoas que mantêm essa economia de pé, diariamente, e que sem elas não há circulação de dinheiro, não há lucro, e consequentemente, o capital não circula. Entretanto, devemos pensar que isso nunca foi uma questão de economia, e sim, de humanidade. Precisamos pensar no próximo, e isso não é apenas para quem está em casa, mas, principalmente, para aqueles que estão desprotegidos nas ruas. Essa falta de empatia traz consequências preocupantes, e, se não tomarmos providências, todos nós seremos afetados, direta ou indiretamente. Alguns mais que outros, e se pensarmos que o cerne da humanidade é a convivência social, não seria dever nosso zelar pelo bem-estar de todos os sujeitos sociais?

Comemoremos então o dia do trabalhador, mas lembremos que a memória da luta dos operários foi, e é até hoje manchada por sangue e suor. Não pelo trabalho, mas por suas precárias condições e remunerações irrisórias que a sede capitalista pelo lucro impõe. A ironia e o sarcasmo podem facilmente ser atribuídos a esta data, pois são justamente estes que morrem na contramão, atrapalhando o tráfego e a entrega do seu pedido.

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Gabriel Martins
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Anthony Colares

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