Coluna da Mariane

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Por Mariane Rocha

5 livros para ler em tempos de crise

Esses têm sido dias difíceis, tempo de desinformação, de fakenews, de ignorância e de violência. E embora a literatura nos salve um pouco disso, às vezes é difícil se concentrar o suficiente para ler, especialmente quando a atmosfera ao redor é de medo e instabilidade.

Como não só de ler livros vive uma leitora, existem uma série de atividades que podemos fazer em relação à literatura quando não nos sentimos motivados o suficiente para embarcar em uma leitura nova: assistir adaptações, reler algum livro que nos traga conforto, participar de eventos sobre literatura, etc. Particularmente, eu gosto da leitura de poemas quando não me sinto disposta a encarar um romance longo. Poemas são doses de leitura que nos tiram da estagnação.

Falando em eventos relacionados à literatura que ajudam a compor esse universo literário, conectar leitores e nos ajudam a debater essas coisas maravilhosas que são os livros, sempre lembro desse evento maravilhoso em Porto Alegre chamado Primavera Literária. Que nome lindo, né? Esse é um evento que surgiu na França em 2014 e foi sediado pela primeira vez no Brasil em 2018, organizado pela PUCRS. O evento é super legal porque traz escritores conceituados, brasileiros e também de outros países. Um dos destaques do ano passado foi a presença do Alejandro Zambra, um dos principais nomes da literatura chilena contemporânea. Infelizmente eu não vi ele falar, porque participei apenas do primeiro dia, que era com poetas, entre elas Angélica Freitas, Ana Martins Marques e Moema Vilela. Recomendo a Revista Modo de usar & co. para quem se interessar pelo trabalho dos nossos poetas contemporâneos que, aliás, são maravilhosos.

Entre as inúmeras reflexões feitas nesse evento, algo que me marcou na fala dos convidados foi um sentimento que as perpassou de que a literatura tem um papel social ainda mais importante em tempos de barbárie. E que, mesmo quando a violência parece ter tomado conta, ainda existem livros, ainda existem poetas e ainda existe resistência. Um dos organizadores da Primavera Literária nos lembrou da seguinte frase de Neruda:

Podes cortar todas as flores mas não podes impedir a primavera de florescer.

Pensando nisso e também pensando que não podemos sucumbir e, acima de tudo, de que precisamos de MUITA FORÇA para sermos resistência, para enfrentar todas essas notícias arrasadoras que chegam até nós diariamente, resolvi compartilhar com vocês hoje uma lista de 5 livros para ler em tempos de crise que eu escrevi em outubro do ano passado, quando os absurdos que estão acontecendo no nosso país eram ainda somente uma perspectiva terrível. São livros que nos fazem recuperar a fé na humanidade, aquela que se perde cada vez que a gente lê os comentários em alguma publicação sobre política ou cada vez que a gente descobre que a educação, os trabalhadores ou/e os mais vulneráveis perderam mais do pouco que já tinham. Espero que ajudem vocês a enfrentarem essa semana! Vamos à lista:

#5 Vidas Secas de Graciliano Ramos

Foto texto Taiza

“A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer “

Essa indicação pode parecer um pouco estranha, afinal, quem já leu ou já ouviu falar sobre Vidas secas sabe que ele é um livro bem triste e com um contexto bastante sofrido. Apesar disso, as personagens desse romance são, para mim, algumas das mais resilientes da literatura brasileira. Elas fazem o que tem que ser feito para sobreviver. E elas sabem que recomeçar é preciso, apesar (ou justamente em função) da fome, da seca, do calor, do inóspito. Vidas secas é uma narrativa cíclica e curta que vai falar sobre a degradação humana de um jeito que nenhuma outra faz, a partir de uma perspectiva que animaliza o humano e humaniza os animais, com uma linguagem tão dura e seca quanto a própria estiagem que as personagens enfrentam.

No posfácio da edição que eu tenho (Record, 2010), Hermenegildo Bastos diz o seguinte:

“Numa sociedade como a nossa, em que o outro (de classe, de gênero, de etnia) está soterrado, uma obra como a de Graciliano Ramos é algo quase único. Mas que não se busque aí o canto da alteridade como coisa dada, pois o que temos é a difícil ou quase impossível alteridade. É no limite que ela se compõe.”

Vai dizer que não é super atual?

#4 Fahrenheit 451 de Ray Bradbury

Fahrenheit 451 é um romance distópico (o contrário da utopia, uma sociedade em que tudo deu errado) e mostra um futuro apocalíptico em que os livros são proibidos. Nessa nova sociedade, as pessoas são viciadas em telenovelas sobre assuntos superficiais e qualquer tipo de arte ou cultura que promova algum tipo de pensamento crítico está banida. O protagonista, Montag, é um bombeiro e os bombeiros são responsáveis por manter o controle da proibição dos livros, então no lugar de apagar incêndios, eles incendeiam os livros que ainda existem. Fahrenheit 451 é a temperatura na qual o papel queima. Essa narrativa é bem intrigante e entra em questões muito relevantes para os dias que estamos, como o predomínio da violência, a alienação que o excesso de entretenimento traz, a preguiça de pensar, etc:

“– Ah, mas já temos muitas horas de folga.

– Horas de folga, sim. Mas e tempo para pensar? Quando você não está dirigindo a cento e sessenta por hora, numa velocidade em que não consegue pensar em outra coisa senão no perigo, está praticando algum jogo ou sentado em algum salão onde não pode discutir com o televisor de quatro paredes. Por quê? O televisor é “real”. É imediato, tem dimensão. Diz o que você deve pensar e o bombardeia com isso. Ele tem que ter razão. Ele parece ter muita razão. Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar: “Isso é bobagem!” (BRADBURY, 2009, p. 122).”

A obra de Bradbury fala muito sobre resistência, seja através de seu protagonista Montag que, a partir de seus diálogos com Clarisse, passa a questionar seu trabalho e as regras dessas sociedade, seja através de seu final – eu não vou contar para não dar spoilers – que nos traz um pouco de esperança por mostrar que sempre existirão caminhos e formas de ser oposição a um regime fascista.  Ah, Fahrenheit 451 tem uma adaptação muito boa para o cinema!

#3 Série Harry Potter de JK Rowling

Harry Potter é essa série linda de livros de fantasia que conta toda a infância e adolescência de Harry enfrentando obstáculos durante seus anos de formação na escola de magia e bruxaria de Hogwarts. Mas é tão mais que isso. Harry e seus amigos enfrentam Lord Voldemort, aquele que não nomeamos (#elenão?), bruxo mais maligno que já existiu. Voldemort acredita que todo mundo que não têm família de bruxos ou que não possui poderes mágicos deve ser exterminado, para que os bruxos detenham todo o poder sobre a humanidade. É a clássica história bem x ma,l e nos relembra de valores super importantes, bem como, na minha opinião, mostra como um regime fascista se forma, a ignorância daqueles que o apoiam, a importância da resistência e como é recorrente que, em tempos de guerra, se faça o mais fácil em vez de fazer o certo. Além disso, é uma ótima forma de parar de pensar um pouco sobre o que está acontecendo e se distrair, porque a narrativa é super envolvente, daquelas que nos faz esquecer do mundo ao redor. 🙂

#2 A ausência que seremos de Héctor Abad

Ya somos el olvido que seremos.

El polvo elemental que nos ignora

y que fue el rojo Adán, y que es ahora,

todos los hombres, y que no veremos.

 (Jorge Luis Borges)

Héctor encontrou esses versos de Borges no bolso do casaco do seu pai no dia em que ele foi assassinado. A ausência que seremos é a biografia que Héctor escreve de seu pai, Héctor Gomez, médico que lutava pela qualidade de vida dos colombianos e defendia direitos básicos para a população, como vacinas e saneamento básico. Ele foi assassinado por seus inimigos políticos, que achavam que seus protestos por direitos humanos e as denúncias dos abusos militares eram subversivos demais.

A ausência que seremos é um livro denso, poético, lindo, cheio de sofrimento e violência, mas também cheio de amor e de coragem. Ele nos ensina várias lições sobre a importância de se posicionar e de falar; através de uma narrativa cheia de enredos, cujo biógrafo é o próprio filho de Héctor. Assim, esse livro é bem mais que uma biografia, é um livro de memórias e também um livro de protesto. Ele mostra a importância da família e dos amigos estarem unidos em momentos difíceis. Além disso, é uma ótima oportunidade pra ler um autor colombiano, né?

#1 A rosa do povo de Carlos Drummond de Andrade

Eu sou bem suspeita pra falar de Drummond, porque ele é meu poeta preferido e eu amo praticamente todos os livros dele. Não é à toa que minha dissertação de mestrado foi sobre a poesia dele. Mas A rosa do povo é especial. Não somente foi o livro que me apresentou à obra drummondiana, mas é um livro repleto de significados profundos, escrito em um momento extremamente conturbado de guerra, intenso, dolorido e incrivelmente sensível.

Essa obra) reflete um “tempo”, não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário.

Drummond, para a segunda edição de A rosa do povo.

Embora os poemas desse livro de forma geral carreguem um tom bastante melancólico e pesado, a própria imagem poética da rosa nos dá uma pista de que há um otimismo e uma esperança no meio do caos e que esses residem no povo. Recomendo muito esse livro porque acredito que a poesia ativa sentidos e entendimentos em nós que, muitas vezes, a narrativa presa em sua linearidade estrutural não é capaz de fazê-lo.

Hoje, então, o poema pra alegrar a semana é retirado desse livro incrível. É um dos poemas mais famosos do poeta e fala justamente sobre a resistência que surge em lugares inesperados:

#Poema para alegrar a semana

A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias, espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Obrigada pela leitura e nos falamos na próxima leitura! 🙂

Mariane Rocha

é leitora desde que se conhece por gente, formada em Letras – Português, Inglês e respectivas Literaturas, especialista em Literatura Inglesa e mestra em Literatura Comparada. Professora de Português, Literatura e Inglês no IFSul – Jaguarão.

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