Coluna da Mariane
Por Mariane Rocha
Black Mirror, fotografia e nossa vida monitorada
Essa semana ministrei um minicurso na Semana Acadêmica do Curso de Informática para Internet do IFSul – Jaguarão, instituição na qual eu sou professora. O curso se chamava “As tecnologias (audio)visuais na sociedade de controle: uma conversa sobre Black Mirror” e a ideia era debater como a fotografia e o audiovisual vêm cerceando a nossa liberdade e como nós mesmos fornecemos as informações necessárias para o nosso controle.
Falando assim, parece um pouco teoria da conspiração, eu sei. É aí que entra Black Mirror, série britânica produzida pela Netflix, para compartilhar conosco que prestar atenção aos lugares que a tecnologia pode nos levar não é uma questão de paranóia, mas sim de estarmos atentos e reflexivos sobre os usos que fazemos e, especialmente, aos poderes que concedemos às ferramentas que utilizamos.
A netflix original series: Black Mirror
Fonte: Netflix
O episódio que eu usei para discussão nesse minicurso foi o “Arkangel” (S04E02). Cada episódio da série conta uma história independente e, nesse, acompanhamos uma mãe que, após ver a filha de três anos se perder em uma tarde no parque, resolve participar de um experimento. Nele, um chip é inserido na cabeça da criança e, então, os pais, através de uma espécie de tablet, passam a ter acesso à localização da criança via GPS, a informações sobre a saúde da criança – batimentos cardíacos, pressão arterial, etc – e, o que me parece mais preocupante, à visão da criança. Ou seja, tudo que a criança está vendo pode ser transmitido nesse tablet, como se os olhos da criança fossem câmeras. Além disso, os pais podem optar por ativarem “filtros” e selecionarem o conteúdo que a criança está vendo: caso ela tenha contato com algo que a deixe nervosa, ativando os níveis de cortisol, automaticamente a criança deixa de ver aquele conteúdo, enxergando apenas quadradinhos no lugar.
Na foto acima, Sara, a protagonista da série, tem sua visão censurada através dos filtros utilizados pelo controle parental. Assim, toda vez que ela teria contato com sangue, o aplicativo transforma a visão dela em “quadradinhos”, censurando a imagem que causaria o estresse.
Fonte: Netflix, screenshot da tela.
O enredo todo se desenvolve a partir das consequências psicológicas e sociais desse implante na vida de Sara, e eu não vou dar spoilers para quem ainda não viu o episódio. Mas, ao longo de cinquenta minutos, a narrativa toca em diferentes questões éticas, como a privacidade das crianças e jovens, os limites na relação pais e filhos, intimidade e, perpassando tudo isso, o uso indiscriminado das ferramentas audiovisuais.
Teoricamente, a realidade apresentada nesse episódio, assim como nos demais episódios de Black Mirrror, está muito longe do nosso presente. Aliás, essa é a marca de uma distopia (que acho que já falei por aqui em algum dos textos anteriores): servir como um alerta para um futuro apocalíptico que embora pareça muito distante de nós, não é impossível de acontecer. Então quando pensamos no quão rapidamente todo o universo das câmeras evoluiu e no quão presente as imagens estão na nossa vida e na nossa rotina, o controle que é exercido por essas tecnologias não parece assim tão distante.
Explicando melhor, hoje dificilmente precisaríamos de uma câmera dentro do cérebro de alguém para ter acesso às imagens que a pessoa vê. Ela mesmo nos dá esse acesso, através da quantidade de fotos e vídeos que publica diariamente, ou melhor, diversas vezes ao dia nas redes sociais. Acompanhamos a vida das pessoas através das fotos, relatos diários da sua rotina. Joan Fontcuberta, fotógrafo e teórico, diz que antigamente as fotos eram um “ato solene, reservado a ocasiões especiais” e hoje, “disparar uma câmera é um gesto tão banal quanto coçar a orelha”.
É nesse sentido que o autor afirma que vivemos hoje sob a onipresença das imagens, em um mundo no qual as fotografias não mais servem apenas como testemunho de um acontecimento, mas como parte do acontecimento em si. Ou seja, se não há registros visuais, é como se o evento nunca tivesse acontecido. Pensando nisso, quais tipos de acontecimentos estão mostrando às pessoas “lá fora”? De que forma é feita a seleção do que mostramos? Estamos, diariamente, reafirmando que só existem momentos bons, rotina bonita, imagens-de-comercial-de-margarina? Quais tipos de expectativa isso causa em quem “nos lê” através das imagens que publicamos inocentemente? Ou, ainda: o que isso causa, em nós, leitores incansáveis e insaciáveis, que em um minuto rolamos o feed e temos acesso a centenas de realidades recortadas, maquiadas e editadas? Temos o discernimento para saber que o Instagram não é vida real? São questões que não têm uma resposta única, correta e idêntica para todos nós, mas que devem, ao menos, serem feitas de tempo em tempo.
Em Black Mirror, o que aterroriza à mãe é justamente a falta de edição da vida da filha. A vida real que ela não estava pronta para ter acesso: a filha que usa drogas, que faz sexo, que toma decisões que ela mesma não tomaria. Nessa distopia, a adolescente não tem controle sobre o que quer compartilhar, toda a vida dela está exposta aos olhos da mãe. Nós, por enquanto, ainda temos o controle de decidir o que compartilhar e com quem compartilhar. Que façamos um bom uso e, principalmente, um uso consciente desse poder. E, ah, aproveitem a nova temporada de Black Mirror, que foi disponibilizada no último dia 5 na Netflix!
** um poeminha para animar a semana
blind light – Marília Garcia
aqui a luz faz o contrário de iluminar, é como
a desorientação ou a serendipia. blind
light, um quadrado que
cega
a pergunta certa podia ser: o que você
faz enviando postais de lisboa ou
seu telefone não atende a
chamadas com números
longos?
mas não podia dizer nada
o último jantar era silencioso,
enquanto pensava em uma escala que planificasse o
esférico: o mundo não seria redondo
mas alguns pacotes de água empilhados
em uma superfície plana para
cobrir os buracos
deste ponto de vista o azul não é
azul. precisa desta vez de
29 dimensões para caber:
e então ela entra
em cena
silêncio
aqui a luz faz o contrário de iluminar
e mais uma vez o 2 e o 9: primeiro somam
- depois as placas riscavam o ar repetindo-
se a cada esquina. 2. 9. 2. 9
– você ainda vai me ver três
vezes antes do final, fique atento
aos sinais, falou. se procurar as palavras-
chave encontrará
números mas também
seres marinhos, cílios, quilômetro, retina e
eletricidade. 2. 9. 2. 9.2.
o que eu vejo ao lembrar
de você é um buraco
só um buraco.
um buraco cegando tudo.
diante do buraco, as hélices desenhando a
cena em pleno ar:
imagina
que desce durante o giro, o corpo em
câmera lenta caindo
** Para assistir
– Videozinho curto da Jout Jout sobre nosso modo de contar histórias na era das tecnologias visuais.
– Temporada nova de Black Mirror!
** Para ler
– A câmara de Pandora de Joan Fontcuberta: uma reflexão sobre a fotografia na contemporaneidade, em um tom ensaístico, claro, didático, maravilhoso.
** Para ouvir
– A thousand suns de Linkin Park: álbum lançado em 2010, super conceitual, que tematiza o fim do mundo, a guerra, a fome, a destruição. Indico começar por aqui.
beijos e até a próxima coluna,
Mariane Rocha
é leitora desde que se conhece por gente, formada em Letras – Português, Inglês e respectivas Literaturas, especialista em Literatura Inglesa e mestra em Literatura Comparada. Professora de Português, Literatura e Inglês no IFSul – Jaguarão.