Coluna do Saulo

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Por Saulo Eich

Armário Fechado, oficina de estigmas

Nos últimos dias, ao menos dois temas de significativa relevância marcaram o calendário. No dia 17 de maio registraram-se o Dia da Luta Antimanicomial e também o Dia Nacional da luta contra Homofobia, Bifobia, Lesbofobia e Transfobia. Duas questões que compartilham de alguns pontos necessários de se pensar. Ambas remetem ao direito de liberdade e respeito. Respeito aos indivíduos com doenças psíquicas graves que, por muito tempo, foram estigmatizados e marginalizados e respeito à comunidade lgbtq. Dois cenários que podem ser avaliados através de uma mesma problemática: o estigma.

Erving Goffman explora essa questão em seu livro, que possui a denominação que mencionei aqui, “Estigma”, em que ele traz essa referência à noção de inferioridade do “eu”:

“Ter consciência da inferioridade significa que a pessoa não pode afastar do pensamento a formulação de uma espécie de sentimento crônico do pior tipo de insegurança que conduz à ansiedade e, talvez a algo ainda pior, no caso de se considerar a inveja como realmente pior do que a ansiedade. O medo de que os outros possam desrespeitá-la por algo que ela exiba significa que ela sempre se sente insegura em seu contato com os outros; essa insegurança surge, não de fontes misteriosas e um tanto desconhecidas como uma grande parte de nossas ansiedades, mas de algo que ela não pode determinar. Isso representa uma deficiência quase fatal do sistema do “eu” na medida em que este não consegue disfarçar ou afastar uma formulação definida que diz ‘Eu sou inferior, portanto as pessoas não gostarão de mim e eu não poderei sentir-me seguro com elas’.”

Não é difícil ilustrar o peso estigmatizante recaído sobre os doentes mentais, por exemplo, quando pensarmos se, em algum momento de nossa infância nos deparamos com uma situação similar à seguinte: Uma casa de vizinhos ou parentes (ou mesmo a nossa casa), onde um dos membros dessa família permanecia quase que totalmente recluso num “quartinho” e isso servia para que, em nossas mentes infantis, imaginássemos diversas hipóteses que explicassem isso: Seria um monstro? Uma criatura extremamente assustadora ou contagiosa?

Esse era o “cuidado” em saúde mental adotado como prática em muitos casos num passado relativamente recente. E se pararmos para pensar, hoje muito dessa configuração com moldes “carcerários” utilizada para com os indivíduos com adoecimento mental grave permanece. O movimento para libertar essa parte da população dos “quartinhos” e dos modelos de cerceamento desses indivíduos acontece a um considerável tempo já, mas a prisão estigmatizante dessas pessoas ainda permanece no olhar e na percepção de boa parte do sistema. E quando falo em sistema, remeto primeiramente à percepção preconceituosa e de raso conhecimento presente em cada um de nós, se entendermos que o sistema de crenças, ideais e percepções de uma população nasce na individualidade de cada ser pertencente a ela.

E, esse mesmo sistema disfuncional de crenças, preconceitos e desconhecimento atinge outra das temáticas que que quero citar aqui hoje: a questão de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e demais que se enquadram ou se identificam inseridos nessa parte da população. Referir sobre o estigma empregado à população lgbtq não é discutir sobre um tema novo. O preconceito relacionado às orientações sexuais e às questões de gênero imprimem cenários disfuncionais na vida dos sujeitos há muito tempo. O fato é que esses modelos desaguaram num hoje de resistências múltiplas e olhares diversos e aprofundados sobre o que até bem pouco tempo atrás era nos dado como “é isso e ponto final”. É como pensar, utilizando a analogia pejorativa amplamente utilizada para se referir à comunidade lgbtq, que os “armários” do pensamento crítico e do olhar humanizado se abriram de fato e que não existe a possibilidade de eles se fecharem novamente, tampouco alguém retornar pra lá.

As considerações mais importantes que eu gostaria de deixar aqui sobre esses dois exemplos de estigmas sociais que rapidamente destaquei acima são as seguintes: a primeira, parafraseando uma professora do curso de especialização em Educação e Diversidade Cultural ao ministrar uma disciplina de educação étnico-racial, refere a que “ser negro é dor”, como ela afirmou no contexto da questão de raça, e aqui amplio para a afirmação de que “o preconceito é dor pra quem sofre”, pois trata-se de uma recolocação constante em uma posição de desfavor, de descrédito, de deficiência e de desamor. A segunda e principal consideração que quero fazer aqui é que não devemos, ou no mínimo não é o mais assertivo, permitirmos que a dor do preconceito, experienciada por quem sente, ou dimensionada por quem se coloca diante disso empaticamente, nos forneça condições emocionais suficientes para descermos os degraus que referi logo acima, do desfavor, do descrédito, da deficiência e do desamor ao tentarmos convencermos o outro sobre o que queremos lhes dizer e como queremos que ele também sinta, de maneira impositiva e reacionária. Ninguém, numa condição de oposição às nossas ideias e à nossa condição, vai amaciar seus ouvidos através de nosso esforço violento de o fazer nos compreender. As chances de isso acontecer aumentam quando optamos pela disseminação do conhecimento, por tentarmos tornar o outro ciente das noções que lhe faltam pra adquirir um novo olhar. E muitas vezes essa tarefa precisa percorrer vias paralelas, caminhos alternativos, menos diretivos e mais demorados, se valendo do entendimento de que tudo aquilo que o outro não consegue acessar com facilidade e que despende resistência remete a conflitos e não-elaborações do outro com aquela questão. Nesse ponto, recai a nós a necessidade de sermos empáticos também com essas pessoas.

É claro que nem todas as pessoas irão merecer os seus esforços por vias paralelas e caminhos demorados, e muito menos de maneira violenta. Pelo menos não naquele momento. Cada um possui o seu armário, alguns pouco usaram ele, outros estão presos nele em razão do preconceito alheio, outros têm seus próprios preconceitos como algozes trancando a chave por fora. E não refiro só à questão da homossexualidade, como é comumente empregado esse termo, mas aos armários mentais que nos aprisionam. Temos exemplos assim vistos nos representantes máximos da nação. E pensando nisso, o alerta é inevitável, pois o modelo da nova política apresentada até aqui nos joga de novo num horizonte de cerceamento da liberdade, de abandono, de enclausuramento, considerando a questão dos mentalmente adoecidos mais gravemente, do silenciamento imposto, e do reforço da marginalização daqueles que já são historicamente estigmatizados.

Armários fechados impossibilitam a visão clara da importância de considerar e repensar essas questões. Armários fechados escurecem o interno e dificultam a ótica do externo. Por fim, um exercício mental: imaginem se, abrindo esse armário, o que se visse fosse um país torcendo por esse momento de libertação da ignorância e do preconceito. Imaginaram? Utópico, eu sei.

Até o mês que vem!

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