Memórias de um velho casarão

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Por: Rafael Xavier

 

Morávamos todos num velho casarão, que ficava lá pelas terras da cidade de Tapera. Minha infância quase toda se deu, de um certo modo, dentro daquele lugar que tinha parte de mim. Certa feita eram 4h30min da manhã, estávamos batendo esporas acordando todos meio vesgos de sono, mas era necessário. Enquanto o sol tentava empurrar o negro da noite pra fora das vistas dos galos, para que começassem a cantar, pegávamos lenha atrás da casa  pra fazer fogo num fogão feito de barro, que tinha marcas severas da idade. Aquele fogão já havia alimentado tanta gente quanto possamos imaginar na nossa inocência de criança. A laranjeira que fazia vanguarda daquele fim de mundo abria as manhãs que viram até os mais nobres farrapos dos lanceiros negros; já estava surrada de épocas. As velhas hipócritas, com os lábios sujos dos gomos de suas laranjas, faziam murmurinhos aos mais novos para que derrubassem a laranjeira: “Façam lenha dela”, “se derrubarem, fazemos rapadura com a lenha para vocês, criançada”.

Pareciam de fato ter inveja da laranjeira, ao tom que falavam às crianças. Mas bobagem nossa, queriam mesmo era não ter mais as folhas secas para varrer, a idade vinha chegando e atrofiando aos poucos a sanidade dos braços que as velhas ainda tinham. Era essa uma das poucas coisas que elas tinham ainda bem forte, a outra era a língua. Se reuniam e pegavam meia dúzia de bolachas de polvilho azedo e o mate, hasteavam cadeiras de madeira de lei pintada em tons de verniz mal retocado e gasto. Sentavam na soleira da porta e, nesse hábito, as cadeiras ficavam rangendo e gastando a soleira.

Aquele casarão ainda aguentava tempos muitos distintos, fora construído por um senhor muito astuto e engenhoso na arte do desenhar. Tinha tido o estudo com outros velhos ainda mais antigos, um deles havia lutado até na antiga guerra. O senhor construtor e idealizador do casarão tinha feito o projeto com o âmbito de sonho mais longínquo, conseguiu construir com ajuda de alguns amigos de longa data, que decidiram fazer algo em memória de um outro falecido. Durante a vida, aquela casa guardou memórias de tantas pessoas descendentes daquele senhor, felicidades, tristezas e até alguns velórios feitos dentro da sala de entrada e com as duas portas abertas. No final, um herdeiro daquela casa com a tinta branca já perdida do sol, morava com família e companhias agregadas, sabendo de sua história ao longo do tempo, ele autoriza num papel de cartório a  venda dela para o nome de outro que não vem ao caso. Isso foi feito pois a pobreza abatia aquela gente, a comida não se fazia presente e, por isso, trocaram para uma casa menor. A memória física estava fadada ao fim. Só restavam talvez alguns álbuns e as memórias vagas das velhas com alzheimer sentadas na soleira…

 

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