Coluna da Mariane

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Por Mariane Rocha

Estar em outro lugar ou a leitura como viagem

Outro dia, me vi pensando uma série de questões a partir de uma aula que dei sobre o poema “Canção do exílio” de Gonçalves Dias. O poema, cujos versos hoje nosso hino nacional reproduz, foi escrito em um momento histórico em que (re)pensar a nação se fazia imprescindível. Mais do que isso, porém, ele transmite uma nostalgia que só quem já esteve longe da sua terra natal – seja ela país, cidade, região – consegue sentir.

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

De Gonçalves Dias até os dias de hoje, muita água rolou, o Brasil passou por uma série de transformações e cortamos para a próxima cena, que é o livro do uruguaio Mario Benedetti, Primavera num espelho partido, chegando numa caixinha bonitinha na minha casa, onde eu desavisada pensava nos infortúnios de se estar longe da minha cidade natal. Benedetti, no entanto, nos dá um tapa na cara e lembra, através de múltiplos narradores, que durante a ditadura, quem era exilado tinha a sorte de não estar preso e não estar sendo torturado ao mesmo tempo em que vivia a injustiça de não poder estar onde se escolheu estar. Quem indicou o livro do Benedetti para a Tag – já falei dela antes por aqui, dá uma procurada -, foi o Júlian Fulks, outro autor que também pensou sobre exílios, já que sua família veio para o Brasil durante a ditadura na Argentina.

“E nesse momento calou-se um instantinho para perguntar depois, com os olhos semicerrados, concentrada em uma preocupação que sem dúvida não era nova, tio, qual é a minha pátria, a sua eu sei que é o Uruguai, mas estou falando no meu caso, que vim pra cá pequenininha, hein, diga a verdade, qual é a minha pátria. E quando dizia minha tocava o peito com o indicador e ele teve que pigarrear e até assoar o nariz para ganhar tempo e em seguida dizer que existem pessoas, sobretudo crianças, que têm duas pátrias, uma titular e uma suplente, mas a garota insistia; qual era então sua pátria titular…” Trecho de Primavera num espelho partido de Mário Benedetti

Por que o exílio é um tema tão recorrente na literatura? Talvez porque uma das grandes funções da literatura seja, afinal, nos tirar da zona de conforto, incomodar, cutucar as feridinhas e existem poucos sentimentos tão fora da zona de conforto como ser obrigado a estar em um país em que a língua, as pessoas, os hábitos, o clima, a vida, enfim, são lembretes constantes de onde já não se está. Já disse o Homi Bhabha, um moço bacana que se pôs a refletir sobre a nação, que toda nação é uma narrativa, sendo assim, escrever sobre estar longe não nos ajudaria a inventar nossa própria nação? Não nos pareceria, essa, inventada ou real, mais próxima no momento em que se criam memórias no papel?

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“A leitura é, possivelmente, uma outra maneira de estar em um lugar” (José Saramago)

Foto: Mariane Rocha

Essa discussão me lembra ainda de uma citação do José Saramago, “A leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar em um lugar” e em quantos lugares já estive, tantas culturas diferentes as quais tive acesso através dos livros. Claro que filmes e séries também cumprem esse propósito de nos mostrar o que se passa em países e regiões distantes geograficamente e historicamente, mas talvez o poder da literatura resida no fato de que cada lugar que a leitura nos leva é criado a partir de nosso próprio repertório. Se um filme mostrar cenários, prédios e sons de determinados lugares, a leitura nos obriga a criar nossa própria visão, não há um diretor de fotografia para nos mostrar quais cores estão disponíveis no céu de Manhattan. Nos livros, somos os próprios produtores, fotógrafos, montadores e, muitas vezes, também os roteirista das histórias que (co)criamos.

*** um poeminha para animar a semana:

Partir

(Leonardo Tomus)

é só na lembrança da partida

que se revela a partida

e o lugar que se habitava

a casa

a palavra

teu corpo

ser pó em teus olhos

hoje basta

para saber-me

morrer

*** para ouvir: Diáspora, Tribalistas

*** para ler: Outros livros que discutem ditadura e exílios

Formas de voltar para casa de Alejandro Zambra

A resistência de Júlian Fuks

Agora vai ser assim de Leonardo Tomus

*** para participar:

Dia 6/04 acontece o 2º FestFronteira no Café & Prosa, em Bagé. O evento vai contar com diferentes momentos para se discutir literatura e com nomes super importantes da produção literária contemporânea, como Luísa Geisler e Gustavo Czekster.  

festfronteira

beijos e até a próxima coluna,

Mariane Rocha

é leitora desde que se conhece por gente, formada em Letras – Português, Inglês e respectivas Literaturas, especialista em Literatura Inglesa e mestra em Literatura Comparada. Professora de Português, Literatura e Inglês no IFSul – Jaguarão.

Comentários
  1. Taiza Fonseca

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