‘A gente não sabemos escolher presidente’ concordância verbal e variação linguística

Autor: Bruna Rodrigues Goularte de Bastos

Brasil, Brasília, DF, 23/04/1984. Manifestação pedindo eleições diretas (Diretas Já) em Brasília (DF). Foto: Arquivo/AE Contato: 08.184.01 - Negativo: 840784/S.3(17)

Mesmo que você não tenha vivido durante o movimento político que pedia por Diretas Já, no ano de 1985, este trecho da canção ‘Inútil’, da banda Ultraje a Rigor, (álbum provavelmente lhe soe familiar, quer seja pelo conteúdo – que após três décadas ainda retrata o sentimento de muitos com relação a atual situação política do Brasil – quer seja pela marcante falta de concordância verbal. E é sobre este aspecto que trataremos a seguir.

O trecho retirado da música apresenta uma estrutura recorrente na língua falada por muitos brasileiros. De acordo com a pesquisadora Stella Maris Bortoni-Ricardo – professora da Universidade de Brasília e autora de uma ampla bibliografia sobre Linguística – alguns critérios, também chamados por ela de contínuos, influenciam diretamente a maneira com que o falante utiliza a língua, sabendo que a mesma sofre diversas variações, ou seja, não há uma única maneira de falar a Língua Portuguesa e isso é evidente quando observamos a língua que, de fato, é falada pelos brasileiros.

Para Bortoni-Ricardo, os contínuos de (1) urbanização, de (2) oralidade-letramento e de (3) monitoração estilística são fundamentais para entender esse processo de variação. Em contextos mais urbanos, mais escolarizados e com maior monitoração – ou formalidade – o falante terá a tendência de utilizar a variedade mais culta da língua. E o contrário também é verdade. Quanto mais distante da zona urbana, menor a escolaridade e o nível de formalidade do evento comunicativo, mais distante da variedade culta da língua – em geral – será a forma utilizada.

Ao refletirmos sobre o contínuo de monitoração estilística, entendemos porque muitas vezes uma mesma pessoa, moradora da zona urbana e escolarizada, por exemplo, varia a maneira de falar ou de escrever. Ela pode utilizar uma variedade ao apresentar um trabalho acadêmico, ao presidir uma reunião de negócios, ao ser entrevistada como candidata a uma vaga de emprego, ao passo que utiliza outra quando fala ou troca mensagens escritas com seus amigos ou faz compras, por exemplo. Há, contudo, outro aspecto que influencia o modo de falar e escrever. Trata-se da intencionalidade linguística.

Roger Rocha Moreira, compositor da canção citada anteriormente e vocalista da banda, é morador da zona urbana de São Paulo, onde frequentou escolas e instituições bem conceituadas. Assim, o que o levou a escrever A gente não sabemos certamente foi a intencionalidade que o mesmo tinha com relação à canção, causando estranhamento, destacando a maneira com que o brasileiro era – ou ainda é – visto pelos estrangeiros, o que é reforçado pelos trechos /tem gringo pensando que nóis é indigente/ e /a gente somos inútil/.

Em seu artigo Concordância Verbal, a linguista Silvia Rodrigues Vieira destaca que a não realização da regra de concordância constitui ‘um traço de diferenciação social’, o que fica explícito no caso de Inútil, visto que a música trás as características não de todos os brasileiros, mas as dos brasileiros de classe baixa, da mão-de-obra que,  faz carro mas não sabe guiar… faz trilho e não tem trem pra botar.

Mesmo que a intenção por trás da construção A gente somos seja abordar um problema social e discutir a cerca da imagem que o estrangeiro faz em relação ao povo brasileiro, a opção pela utilização da não aplicação da regra de concordância evidencia um fato sobre a língua: a concordância verbal ocupa um lugar de prestígio na língua e a não aplicação da regra pelos falantes gera estigmas e preconceitos linguísticos.

Para Vieira é importante que se compreenda quais os fatores que influenciam a realização ou a não realização da concordância. Fatores estes abrangidos pelas pesquisas variacionistas, visto que nenhum desses fenômenos são arbitrários, precisam, portanto, serem compreendidos, o que diminuiria os estigmas que circundam essas variações.

Com relação à concordância verbal, a abordagem tradicional estabelece uma regra geral. Segundo esta, em estruturas com sujeito simples, apenas um núcleo, o verbo precisa se conformar ao sujeito em número e pessoa. Já nas estruturas com sujeito composto, dois núcleos ou mais, há três possibilidades: (1) caso um dos núcleos seja primeira pessoa do singular (eu), o verbo será flexionado na primeira pessoa do plural (nós); (2) se não houver núcleo em primeira pessoa do singular e houver de segunda, o verbo será flexionado em segunda pessoa do plural; (3) caso os dois sujeitos sejam de terceira pessoa, o verbo será flexionado em terceira do plural.

Nota-se que mesmo a chamada ‘regra geral’ apresenta suas variações. O que acontece, então, com o pronome a gente em ‘a gente somos inútil’ e ‘a gente não sabemos escolher presidente’?

Embora denote coletividade, o pronome a gente, já presente em muitas gramáticas e livros didáticos, é um pronome singular, portanto conformá-lo com o verbo ser na primeira pessoa do plural (nós) é considerado à luz da gramática tradicional como um erro de concordância.

Variações como essas possuem natureza linguística e extralinguística, como é o caso da sínese ou silépse, também conhecida como concordância ideológica, que é o fenômeno no qual a concordância é feita a partir do sentido e não do rigor formal. Isso explica por que muitos falantes, mesmo não sabendo sequer da existência da expressão sínese, concordam o pronome a gente como sendo o pronome nós, pois estes possuem, de fato, o mesmo sentido de coletividade.

O que determina se a concordância ideológica, sínese, será ou não motivo de estima social? Certamente uma convenção que não percebe o mesmo fenômeno em estruturas como a abaixo, onde o núcleo do sujeito é singular, mas denota coletividade, e tem o verbo flexionado no plural: ‘Votem com consciência, povo brasileiro!’.

O texto foi desenvolvido na disciplina da professora Taise.

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