Uma visão nada ortodoxa do mundo LGBT

Livro: Copi. La guerra de las mariconas. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2010.

Rosiane Gonçalves dos Santos Sandim (1)

Morena, pele bronzeada que denunciava sua origem tropical, alta, lábios carnudos, maquiada com requinte, sem marcas de biquíni, ostentando uma longa e farta cabeleira, seios firmes e pontiagudos; sob a capa adornada com plumas de pavão, além de uma aura de mistério que a antecedia, um pênis que se assemelhava a um antebraço. Essa é a descrição física de Conceição do Mundo, personagem principal do romance de Copi, que tem como cenário inicial a Paris de todos os amores, de todas as luzes.

Cercado inicialmente pela magia da cidade luz, o autor argentino descreve os conflitos internos e externos na vida de um grupo de homossexuais que veem ameaçados os seus direitos básicos de convivência por outros homossexuais recém-chegados à capital francesa. Estes possuem comportamentos adversos aos daqueles já ali residentes. Isso nos remete ao título do livro, pois se trava um tipo de guerra entre os grupos opostos, revelando os conflitos políticos que aconteceram nos anos 70 e 80 entre esses grupos considerados minoritários. Essa guerra entre os grupos pode ser compreendida como interna. De um lado, havia um grupo lutando para sair das regras impostas pela heteronormatividade. Por outro lado, os rivais que, embora fossem homossexuais, acreditavam que deviam ser comportados, nada de exagero, de trejeitos efeminados.  

O narrador, o próprio Copi, mantém um relacionamento homoafetivo com Pogo Bedroon. Este, já nas primeiras linhas, acaba sendo vítima do assédio sadomasoquista da personagem principal. Isso o deixa seriamente mutilado e com o rosto deformado, o que é ricamente ilustrado pelo narrador com requintes e detalhes bizarros das deformações anatômicas sofridas pelo seu companheiro.  Desolado com sua nova aparência e vítima de um narcisismo tipicamente americano, Pogo vê o suicídio como única saída para sua situação, mesmo que cercado de atenção pelo seu companheiro e amigos. Estes têm suas origens minimamente detalhadas no romance, bastando apenas poucas linhas para situar o leitor da existência de todos eles. De maneira desesperada e pouco usual, Pogo alcança seu objetivo na continuidade da obra.

Conceição do Mundo, sempre cercada por “su madre”, destaca-se como uma espécie de líder dos homossexuais que vão ao encontro dos costumes locais. Ela é idolatrada por suas companheiras de grupo, não somente por seus atributos físicos, ou por sua trágica história de vida – quando a mesma (ou o mesmo) foi separada de seus pais por sua condição incomum – mas, por crerem que ela era a reencarnação de uma criatura mística que só vem ao mundo a cada milênio para disfrutar dos prazeres terrenos.

O narrador se rende aos encantos e acaba se envolvendo com Conceição, e se apaixonando por ela, mesmo após ela ter mutilado seu companheiro e o levado ao suicídio. Porém, o que torna esse novo amor tão envolvente é a condição física pouco peculiar da personagem principal que apresenta genitália dos dois sexos, também minuciosamente descrita pelo escritor, o que reforça a aura de divindade e misticismo em torno dela. Para uma criatura sagrada cuja encarnação, após mil anos, teria como objetivo os prazeres terrenos, nada mais obvio que ter os atributos físicos para sentir prazer de todas as formas “humanas” possíveis. E, além disso, Conceição se recusa a passar por cirurgia para adequação genital.

A concretização física desse novo sentimento é fartamente ilustrada pelo autor, numa linguagem direta e grotesca, valendo-se de expressões nada formais e situações exageradas no relacionamento entre “seres” do mesmo sexo, dando especial destaque para as até então inéditas sensações vivenciadas pelo narrador, quando sentiu pela primeira vez os prazeres de uma penetração vaginal com Conceição.

O enredo, que poderia perfeitamente ser a mescla de uma versão portenha de novela mexicana com o seriado Lost, ainda guardaria surpresas inesperadas como o romance entre a mãe de Copi e o mentor de Conceição. Além disso, há as constantes ameaças que a protagonista sofre de ter seu magnífico membro extirpado por Vicente de Luna. Há ainda um acidente que acaba remetendo a maioria dos personagens, que sobraram vivos no romance, para uma nave espacial, pois a Terra estava aniquilada devido a uma devastadora guerra, o que tornou a vida inviável neste planeta.

A linguagem erótico/obscena e a queda de conceitos éticos(?) são uma constante no romance, uma vez que todos os encontros e desencontros entre Copi e Conceição acabam em sexo ou felação. Essa linguagem também é explícita na imagem de viúva pudica e moralista que o autor tinha de sua mãe, mas se esvai durante o relacionamento dela com Vicente; na relação pseudo incestuosa entre Vicente e Copi; na transformação ou descrição das nativas do Amazonas como canibais tendo a mãe do próprio narrador como prato principal; e nos devaneios homo afetivos regados por conflitos internos que também são elementos sempre presentes na obra.

Para desenvolver a narrativa, o autor usou sabiamente de um humor refinado e sutil. Talvez essa estratégia possa chocar o leitor desavisado, uma vez que os palavrões, a descrição pormenorizada das sensações vivenciadas pelos personagens nas inúmeras relações sexuais, o sadomasoquismo, as mortes violentas e uma visão crítica e exageradamente grotesca das relações entre grupos homossexuais. No entanto, todas essas tramas estão bem distribuídas entre os capítulos do livro. Assim, temos a justificativa de sua leitura, pois esse universo rabelaisiano nos remete, com suas situações psicodélicas e ficcionais, criadas pelo escritor, ao convívio desse grupo frequentemente hostilizado e rotulado que são os homossexuais, nos fazendo enxergar, mesmo que de uma maneira carnavalizada, que independente da orientação sexual, em cada ser existem sentimentos, dores e mágoas, sorrisos e lágrimas num constante turbilhão emocional que a sociedade intitulada moralista insiste em não enxergar.

 

(1) Aluna do 3º semestre do Curso de Licenciatura em Português e suas respectivas literaturas. Bolsista de iniciação científica do CNPq.

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