Um tipo bem brasileiro esse Cassi Jones, taôkey? (Não sem antes, uma introdução para concluir o ano)/ Coluna Adriano de Souza

Por Adriano de Souza

 

Esta é a derradeira coluna de 2020. Foi muito legal usar este espaço para dividir e ampliar as impressões das leituras que tenho feito neste ano. Foram nove textos, dos quais oito tratavam de romances dos escritores Lima Barreto e Machado de Assis. Nunca li um/a autor/a dessa forma que estou lendo para esta coluna, ou seja, pegando sistematicamente a obra do/a cara e lendo do primeiro ao último livro. Recomendo, se você gosta de ler literatura. Aliás, acho que é isso que esta coluna acaba fazendo, compartilha experiências de leitura, recomendando-as, na maioria das vezes.

Claro que, por outro lado, esse projeto de leitura se deu também muito em função das condições de isolamento que tenho procurado manter ao longo da pandemia. Costumo dizer (mais pensar do que dizer) que a tecnologia da escrita, e o letramento daí advindo, são os eixos centrais para a manutenção da minha saúde mental. Em períodos como estes, ler e escrever (e ter projetos de sentido para ler e escrever) me ajudam a manter a mente minimamente organizada, alimentando a esperança em dias melhores e a fé na humanidade, questões essas que me interessam particularmente.

Já lemos, para esse projeto, Ressurreição, Helena, A Mão e a Luva, Iaiá Garcia, Memórias Póstumas de Brás Cubas; Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Triste Fim de Policarpo Quaresma, Numa e a Ninfa, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, Clara dos Anjos (do qual falaremos hoje), e estamos apenas no começo, por isso, quero dizer que em 2021, devemos continuar a nossa saga pela literatura do Machado e do Lima. Vamos juntos/as?! Antes, tratemos de Clara dos Anjos para concluir 2020. Bora lá…

Morro da Favela, Tarsila do Amaral (1924). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2324/morro-da-favela. Acesso em 14/12/2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

Morro da Favela, Tarsila do Amaral (1924). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2324/morro-da-favela. Acesso em 14/12/2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

Quando li Clara dos Anjos, livro de Lima Barreto, fiquei com a impressão que o recado principal ali era sobre Cassi Jones. Talvez eu esteja enganado, leia você, tire suas conclusões e me conte se estou. Pra mim, foi como se o narrador dissesse ‘pega a visão: tem a Clara, moça de bem, sempre na linha, saindo da adolescência, descobrindo a vida, e tem o Cassi, um patife, um pilantra, um biltre. Biltraço. Eles vão se relacionar carnalmente, afetivamente. Ele branco, ela negra. Ela vai ficar grávida, ele vai pular fora’. A continuação dessa história você conhece, é aquela contada, muitos anos depois, por Mano Brown: “daria um filme, uma negra e uma criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço (…) família brasileira, dois contra o mundo, mãe solteira de um promissor vagabundo – luz, câmera e ação, gravando, a cena vai… – um bastardo, mais um filho pardo, sem pai”.

Lima Barreto nos deixou antes de contar a continuação da história de Clara dos Anjos. O livro termina com ela, grávida, abraçada à mãe, às lágrimas ambas, Clara dizendo: “Mamãe… Nós não somos nada nesta vida.”(p. 862). Frase profunda e repleta de sentidos sociais e psicológicos. Penso que, passado o desespero inicial, ela enxugaria as lágrimas e iria à luta. Normal. Como na música de Brown, renascendo das cinzas, da lama. Da lama, aliás, de onde vêm os diamantes.

A seu lado, Cassi Jones tem a branquitude e o patriarcado. Ele é o cara que, na festinha chique, dopa a companheira para estuprá-la, contando que será inocentado da acusação de estupro, não sem antes, claro, culpabilizar e humilhar a vítima. Os métodos são outros, a prática não. É muito significativo que Lima não tenha deixado passar batido essa figura de Cassi Jones. Um personagem de vícios morais incontornáveis, malandro incorrigível da pior espécie, vadio vocacionado. Um valdevinos, como o chama o narrador. E branco. “Hei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é/ Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé”. Mano Brown segue cantando. 

Nas palavras do narrador de Clara dos Anjos, eis aí Cassi Jones:

 

Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro. (p. 733).

 

Um tipo bem brasileiro esse Cassi Jones, taôkey? 

 

Pois é. Lima é que sabia das coisas.

 

Até 2021!

 

BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. In.: BARRETO, Lima. Obra Reunida: vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018 [1948].

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Adriano de Souza, no mundo, é só mais um. Em seu país, não é mais do que ninguém. No Rio Grande do Sul, nasce a cada mês de julho. A Santa Maria volta sempre que precisa se reencontrar. Em Camobi, amarelou seus verdes anos. Em Bagé faz análise. Em casa, pelas cordas do violão, vai tocando a vida, às vezes desafina, outras não.

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