Reflexões sobre as leituras que não poderia ter morrido sem fazer / Coluna da Mariane

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Por Mariane Rocha

No último dia 11 completou dois anos que eu sofri um sério acidente de carro. Foi um acidente sem fatalidades e sem maiores danos, mas frequentemente me encontro refletindo sobre o que poderia ter acontecido de diferente. Fantasiar sobre a própria morte é exercício frequente dentro dos enredos literários as personagens que se deparam com um possível/suposto/inevitável fim, são muitas vezes problematizadas a partir de uma série de reflexões sobre o passado e seus arrependimentos.

Os arrependimentos e remorsos não estão dentre as minhas preocupações sobre a morte, já que há bastante tempo fiz as pazes com as coisas que poderia e gostaria de ter feito diferente. Mas, nesse aniversário de quase morte, a reflexão sobre todas as coisas que eu não teria feito nos últimos dois anos, caso eu não estivesse mais por aqui, me atormentou. No fluxo de cenas resgatadas que minha memória recriou, certa compreensão se sobressaiu às outras   todos os livros que eu não teria lido! 

Foi esse pensamento que me inspirou a fazer uma lista dos livros que eu não poderia ter morrido sem ler. Incluo na lista não somente os livros que eu li no ano passado, mas livros que li durante minha trajetória enquanto leitora e que me fizeram diferente de quem eu era quando comecei a lê-los. De tempos em tempos, retorno a eles, porque ainda conversam comigo. São livros que eu gostaria de indicar a todas as pessoas que eu conheço, naquela ânsia de quem acredita que eles irão mudar também a vida dos outros. Aqui vão eles, na ordem que foram aparecendo na minha memória, sem nenhum critério específico de valor:

 Crime e Castigo de Fyodor Dostoyevsky 

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Fonte: google images

Crime e Castigo foi um dos livros que li durante a graduação, não por ser leitura obrigatória, mas por ser recomendado por todos os professores de literatura que eu tive – com o tempo a gente aprende que se o professor de literatura recomenda fortemente uma leitura, a gente deve fazê-la. Li ininterruptamente as quase 600 páginas se existe outro jeito de ler Dostoyevsky, desconheço durante alguma das férias de verão e ele me marcou de tal forma que, embora hoje eu não lembre mais dos detalhes do enredo, lembro com exatidão da agonia que eu senti e do clima claustrofóbico que o Raskolnikov consegue transmitir através de suas paranóias e culpa consumidora. 

O livro das semelhanças de Ana Martins Marques

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O livro das semelhanças está compondo essa lista, não somente por ser um dos livros mais lindos que eu já li, característica que por si só não diria muita coisa, mas por dialogar com o tempo presente de uma forma que, mesmo os livros considerados mais “modernosos”, cheios de características contemporâneas, não dialogam. Ana Martins Marques é a poeta ao qual recorro quando determinadas questões existenciais, como a passagem e a percepção do tempo, o significado das miudezas do cotidiano e a forma de habitar os lugares, me assolam. 

Dom Casmurro de Machado de Assis

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fonte: Chico rei

Machado de Assis é um desses autores que não precisam de explicação, embora minha função de professora de literatura exija, frequentemente, que eu explique para alunos que o lerão pela primeira vez os porquês dessa obra figurar nosso imaginário de literatura brasileira aliás, que prazer indescritível este de apresentar um autor maravilhoso para uma pessoa que nunca o leu! . Durante muito tempo fugi do Machado de Assis – fruto, talvez, da minha experiência aos 13 anos, quando me vi obrigada a lê-lo, na 8ª série, para a disciplina de língua portuguesa e literatura. Que livro bem ultrapassado, pensava, na época. Hoje, quando releio, sempre penso – que livro bem atual. Tento sugerir a leitura dele sempre aos meus alunos, enfatizando as explicações do porquê ele é importante, sem contudo, obrigá-los a leitura, dando sempre a opção das leituras dos contos machadianos que, se não ocupam para mim o lugar especial que Dom Casmurro ocupa, ainda deixam evidente muitas das características que espero que eles apreendam. 

O ovo apunhalado de Caio Fernando Abreu

Demorei pra dar o devido valor ao Caio baseada nos clichês e nas citações de internet, achava que o Caio era banal e meio melodramático. Quando tive acesso, entretanto, aos contos completos dele, longe da fragmentação que a internet proporcionou, eles me proporcionaram uma experiência literária que nenhum autor proporcionou. O ovo apunhalado revela aspectos íntimos do ser em narrativas que tem uma atmosfera quase etérea. Eu adoro a capacidade que o autor tem de usar enredos tão complexos e profundos no gênero conto, provando, juntamente a outros contistas brasileiros maravilhosos, que o lugar de menor prestígio onde os estudos literários muitas vezes posicionou o conto, é injusto e equivocado. 

Ensaio sobre a cegueira de José Saramago

pasted image 0 (2)fonte: lorde dos livros

Coincidentemente, Ensaio sobre a cegueira também foi um livro de segundas chances. Comecei a lê-lo aos 16 anos, no último ano do Ensino Médio e não consegui. O discurso indireto livre me cansou nas primeiras 50 páginas. Apesar disso, muitas vezes depois, a cena inicial do homem que fica repentinamente cego enquanto tenta olhar para o semáforo voltou na minha mente. Alguns anos mais tarde, então, eu criei coragem para retomar o que foi uma das melhores leituras da minha vida, em nível de linguagem e de reflexão social. Sempre tive uma reflexão de amor e ódio com a literatura portuguesa e o Saramago foi um dos autores que promoveram minha e reconciliação com ela, através de uma narrativa complexa e intrincada, exigente de uma leitura ativa e de uma reflexão, por vezes, dolorosa. 

 ~extra, extra~ 

A Rosa do povo de Carlos Drummond de Andrade

A Rosa do povo é, sem dúvidas, o livro preferido da minha vida inteira e sem a leitura dele, eu hoje não seria quem eu sou. Mas não vou incluí-lo nesta lista, porque eu já comentei sobre ele em coluna anterior e em vários outros momentos aqui pelo Junipampa. Ele foi um dos objetos da minha dissertação e, para quem quiser se aprofundar em algumas das minhas análises mais formais sobre ele, pode acessar este artigo aqui.

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Interessante notar que boa parte das leituras mais significativas da minha vida, listadas acima, foram resultados de uma segunda chance. Leituras que eu não estava pronta para ler no momento que li e, apenas algum tempo depois, consegui realizá-las e ser movida por elas. Em um texto que foi originado pela reflexão de segundas chances na vida, pensar que essas leituras não se mostraram possíveis no primeiro contato, me fez ter ainda mais carinho por elas. Ficam as sugestões de leitura e, talvez mais do que isso, o convite para que vocês façam a reflexão sobre quais leituras moveram vocês e os transformaram em quem são — reflexão que pode ser estendida para qualquer outra esfera da vida: filmes, músicas, pessoas… 

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um poeminha para animar a semana 

Alguns gostam de poesia

Alguns –

ou seja nem todos.

Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.

Sem contar a escola onde é obrigatório

e os próprios poetas

seriam talvez uns dois em mil.

Gostam –

mas também se gosta de canja de galinha,

gosta-se de galanteios e da cor azul,

gosta-se de um xale velho,

gosta-se de fazer o que se tem vontade

gosta-se de afagar um cão.

De poesia –

mas o que é isso, poesia.

Muita resposta vaga

já foi dada a essa pergunta.

Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso

como a uma tábua de salvação.

SZYMBORSKA,Wisława. Poemas. Trad. de Regina Prazybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

** Nota de fim: Ao revisitar este texto, alguns dias depois de sua escrita, para fins de revisão, me senti muito injusta e lembrei de pelo menos uma dezena de livros que mereciam ter sido incluídos nesta listagem. Para um full disclosure, então, deixo registrado que a lista dos livros que não poderia morrer sem ler está incompleta e, se tudo der certo, continuará aumentando até o dia em que não dê mais tempo de incluir novas leituras. 

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beijos e até a próxima coluna,

Mariane é leitora desde que se conhece por gente, graduada em Letras, especialista em Literatura Inglesa e mestra em Letras na área de Literatura Comparada. Atualmente é professora de Português, Literatura e Inglês no IFSul em Jaguarão e doutoranda em Letras, com ênfase em Literatura, cultura e tradução na UFPel.

 

 

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