PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO PARA AS ESCOLAS INDÍGENAS

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Por Sueli Krengre Cândido

 

Este tema foi escolhido por mim Sueli e pelo colega Miguel, ambos somos professores indígenas, trabalhamos numas das escolas indígenas que temos na aldeia da Terra Indígena Guarita. Pensamos que este seria um tema importante para compartilharmos e com isso podemos divulgar um pouco sobre nós indígenas do povo Kaingang. Então, a nossa terra tem 23.406,86 hectares, com uma população de mais de sete mil indígenas, abrange e faz parte dos municípios de Erval Seco, Redentora e Tenente Portela. Temos onze postos de saúde, onze escolas, onde os profissionais são indígenas e não indígenas -estes atuam onde ainda não há indígenas com formação adequada. Como já somos professores há anos, decidimos buscar mais conhecimento participando da seleção para o curso da educação do campo na Unipampa, assim muitos indígenas estão fazendo para que depois de se formarem possam ocupar os espaços sem problema nenhum, pois para isto devemos conquistar e merecer o tal canudo que prova a habilitação para atuar naquela área. Este ano de 2018, iniciamos a graduação na Educação do Campo. Com esta experiência ainda estamos nos ambientando, tanto com a cidade, a universidade e principalmente com a alimentação, mas já vencemos a primeira etapa que foi o tempo universidade. Neste tempo fizemos amizades, as aulas estão sendo bem ministradas pelos docentes, pois nos dão o direito de nos manifestarmos dentro dos componentes trabalhados, já acrescentamos mais conhecimentos vividos trocando ideias, experiências, assim como as vivências com os demais colegas de sala de aulas e com outros. Em nenhum momento nos sentimos discriminados por parte dos colegas e professores, coisas que já sentimos em outros ambientes, que já vivenciamos durante o nosso trabalho, o qual realizamos muitas vezes dentro da educação, como professores. Nesse pouco tempo, na universidade, já reparamos que até o nosso vocabulário está mudando. Já somos leitores e escritores sobre nós mesmos, do nosso povo e continuamos neste rumo, sempre buscando, lutando para que nossos usos e costumes estejam marcando presença em nossas vidas mesmo com a modernidade em alta dentro das nossas aldeias em geral. Gostaríamos de poder usar a tecnologia a nosso favor, por isso estamos sempre buscando cada vez mais ajuda de qualquer simpatizante que nos auxilie em nossos trabalhos para que o nosso povo continue vivo, demostrando seus conhecimentos e sabedorias, compartilhando e mostrando ela da forma que encontrarmos. Dizemos isto, porque, desde o período colonial, a nossa educação indígena no Brasil vem sofrendo com a homogeneização cultural por parte integracionista, no sentido de transformar nós indígenas em cidadãos nacionais desconsiderando as diferenças étnicas, linguísticas, culturais, entre outras. A partir de uma intensa mobilização indigenista em prol de processos de escolarização diferenciada, que iniciou nos final dos anos de 1970 aos anos 1980, deu-se início começou-se a luta pela educação diferenciada para os povos indígenas. Este movimento era para reivindicar a emergência do direito à educação diferenciada para indígenas no contexto mundial, consubstanciado na ideia de inclusão de diferença na escola para todos e na garantia de direitos indígenas internacionais. Com isto, o estado brasileiro publicou o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEIs), no ano de 1998, e a coleção de livros didáticos do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. A elaboração destes livros teve a participação de representantes, lideranças e indígenas que já atuavam como professores nas escolas, onde procuraram delinear uma proposta oficial para a construção de currículos e materiais didáticos específicos na direção da efetivação de práticas pedagógicas diferenciadas nas escolas indígenas brasileiras. Através destes documentos e também com os direitos garantidos na constituição, muitos professores indígenas iniciaram o trabalho da construção do seu próprio material didático escrito na língua materna, focando propostas de seleção e organização dos conteúdos, bem como os indicativos de práticas pedagógicas para as escolas diferenciadas para indígenas, voltados ao cotidiano.  Com a participação de indigenistas, colaboradores, apoiadores e outros simpatizantes da causa indígena começou-se a elaboração de livros que tratam de assuntos/temas diversas e culturais. O primeiro a ser criado na nossa terra indígena foi no ano de 2006. Este livro era apenas um guia e não um material didático pedagógico que fosse especificamente voltado para o uso do professor em sala de aula, pois só tinha texto sobre alguns temas gerais. Nos últimos quatro anos, o MEC criou o programa “Saberes Indígenas nas Escolas” que nos proporcionou bolsa a orientadores, formadores, pesquisadores e professores cursistas para pensarem em elaborar material didático pedagógico escrito em nossa própria língua, onde buscamos resgates de vivências que já estavam sendo quase esquecidas junto aos nossos kofá (velhos), considerados nossas bibliotecas vivas.

O objetivo da produção do material didático já vinha sendo pensado desde os primeiros professores que se formaram como monitores nos anos 70, os quais tinham a função de acompanhar os professores brancos que atuavam nas escolas indígenas, dentro das aldeias dos anos 70. Tais professores usavam a sua língua materna, pois, naquela época, nós indígenas ainda não tínhamos conhecimento de outra língua, além da nossa. Dentre as dificuldades que vivemos para construir esta escola diferenciada, uma delas é que temos poucos livros com realidades voltadas a nossa cultura, pois a que vem do MEC são iguais às demais escolas e não contemplam as nossas vivências, pois cada povo tem suas diversidades culturais locais ou regionais. Estas dificuldades podem ser superadas através da produção de nossos próprios livros junto a cursos de formação e capacitação ou programas que dão a possibilidade de continuidade do que já está sendo feito. Com o programa Saberes Indígenas nas Escolas, hoje temos a possibilidade de criarmos os nossos livros didáticos, os quais tratam das nossas realidades do dia a dia, em conjunto com pessoas que se dedicam a nossa causa, como alguns órgãos governamentais e não governamentais, universidades, apoiadores e colaboradores. Nosso primeiro livro publicado, como dito anteriormente, foi em 2006, intitulado “Guia do Professor: Cultura, Ambiente e Biodiversidade”, em parceria com COMIN (Conselho de Missão entre Povos Indígenas). Este é um livro que contém conhecimentos indígenas e não indígenas, pois envolveu agricultores de fora das aldeias. Para isto foram realizadas algumas atividades em conjunto, descobrindo modos diferentes de ser e de pensar. Os agricultores familiares, os povos indígenas e a equipe técnica passaram a trocar ideias, experiências, sementes, sorrisos, informações, entendimentos etc. Conhecer e aprender como ambos veem a vida, o que os fatos, as experiências,… significam para  cada cultura; a preocupação com a segurança alimentar,…fazer comparações com o que é familiar para nós, mas que é preciso respeitar as diferenças, o direito do outro de ser diferente: no pensar, no falar e no agir. Para esta produção e publicação contamos com a participação de três escolas da Terra Indígenas Guarita- RS em parceria com o COMIN.

Em todo o mundo existem iniciativas em defesa da vida e da diversidade biológica, cultural, étnica, etc. Agricultores familiares, povos indígenas e algumas entidades, estão resgatando as sementes variáveis, que haviam sido relegadas ao esquecimento, submetendo a humanidade aos encantamentos das sementes híbridas e das sementes transgênicas, reduzindo drasticamente a diversidade biológica, onde os saberes das pessoas e dos povos, suas formas diferenciadas de viver e de se relacionar também não são consideradas. É um desejo nosso que os professores das escolas não-indígenas, assim como também a universidade, tenham acesso a nossa produção, possibilitando-se assim trabalhar estes conteúdos com uma abordagem diferenciada: holística, ecológica e espiritual, novamente em sintonia com a natureza: cuidando, acolhendo e respeitando.

Acreditamos que todos que participaram da elaboração do material conheceram e vivenciaram as necessidades imediatas das comunidades indígenas, e este guia quer ser um instrumento a mais, contribuindo para animar e subsidiar as discussões relacionadas a estes temas. Os autores deste guia socializaram o que receberam gratuitamente em sua pesquisa e também o que conquistaram com sua dedicação e esforço.

O material que chegou a todas as escolas indígenas, sendo as que participaram ou não do resultado, da elaboração e da publicação e, graças ao esforço de pessoas que estão preocupadas com as questões indígenas, estão manipuladas pelos profissionais que atuam dentro das escolas, sendo eles indígenas e não indígenas. Questões estas que exigem dedicação, empenho ético e responsabilidade humana e social e a questão indígena é uma delas. Este material é a expressão das ações reflexivas e produtivas que professores e professoras têm empreendido no intuito de criar maiores vínculos entre as diferentes culturas, proporcionando uma roda de diálogo, capaz de gerar círculo de compreensão.

As escolas de hoje, assim como as universidades, onde há indígenas estudando, precisam cada vez mais agregar e possibilitar que as diferenças culturais sejam visualizadas, sem pré-conceitos, por meio da articulação de projetos interculturais definidos quanto a sua intencionalidade pedagógica. Mais do que apresentar um conjunto de informações, o texto busca simpatizantes interessados em construir pontes de diálogo com os diferentes saberes e sabores que advém da cultura Kaingang. Compromisso e responsabilidade humana, simpatia e solidariedade, talvez possam ser as palavras que descrevem de forma mais objetiva o que o grupo de autores do material buscou construir. Desejamos que a leitura, o estudo e a utilização do material em diferentes atividades, sejam elas escolares ou não, possam gerar compreensão, partilha e compromisso com a vida dos povos indígenas. Esperamos que com este texto, possamos encontrar pessoas que queiram se juntar a nossa luta de continuar a construção de nosso material didático voltado as nossas realidades.

Referências Bibliográficas:

COMIN/ CAPA (Parceria) & Escolas Indígenas da Terra Indígena Guarita. Org. José Manuel Palazuelos Ballivián. Guia do professor- Cultura Ambiental e Biodiversidade – Belo Horizonte: UFMG, 2006 88p.: il.;

Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. – Brasília: MEC/SEF, 1998.

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*Texto produzido durante o curso #Aprovados: práticas de letramentos acadêmicos e vivências universitárias.

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