Por que morrem as flores?/ Coluna PET Letras

Na coluna deste mês, divulgamos o texto vencedor do I Concurso Literário do PET-Letras, promovido no ano de 2020.

Por Bruna Cunha Brasil

Observo você deitada, suas pernas que antes corriam e dançavam pela casa já não são mais as mesmas, seus braços, que embalaram filhos e depois netos, hoje mal seguram uma colher, os cabelos cinzas, as ruguinhas na pele, tudo isso é sua história. Cada cicatriz que adquiriu devido à infância sofrida, cada queimadura que ganhou ao tentar cozinhar tão jovem, tudo isso é você. Agora está usando um roupão que antes você odiava, pois a deixava velha, usa também um cachecol para impedir o frio de adentrar sua tão sensível pele, no entanto, continua linda e amável. 

Se envelhecer é inevitável, sofrer também é. Toda vez que o telefone toca, sem que eu esteja esperando uma ligação, meu coração começa a acelerar, pois o medo anda rondando a todos nós. Quando nossos pequenos questionam o que lhe aconteceu ficamos em silêncio ou, muitas vezes, apenas falamos que é a idade, crianças são privilegiadas por não conhecerem a vida como ela é. 

Eu me lembro de como isso começou, você esqueceu uma receita simples, depois esqueceu como se jogava cartas e assim seguiu. Mesmo pagando o melhor médico da cidade, nós não conseguimos evitar o inevitável. Você nos questionava sobre a Sandra, sem lembrar que ela havia falecido anos atrás, em questão de um ano depois chegou a pior parte, você esqueceu nossos rostos. Primeiro esqueceu a caçula, depois o do meio e, por fim, em uma quarta-feira ensolarada, você esqueceu de mim. Eu sabia o que aquele olhar tão perdido significava, sei que todo dia acorda sem saber onde está exatamente, tenta olhar para as fotografias e apontar algo que lhe seja familiar, mas todos são estranhos aos seus olhos. 

Sei que um dia você se tornará uma enorme constelação, que seu espírito acolhedor restará apenas em nossa memória, junto ao seu rosto e voz, mas mesmo sabendo disso eu não consigo aceitar, é como se a imortalidade fosse seu poder especial e eu acabei por descobrir que ele não existia. Por mais inconformada que eu fique, a vendo assim de longe, eu sei que só precisa descansar. Você pode partir agora, eu prometo eternizá-la em cada dia que eu viver. 

Que os anjos a acolham com amor, caso existam. E se existir também a eternidade, que seja repleta de flores, de todos os tipos e cores, para enfeitar o seu jardim. Que tenha música e dança, para o seu corpo reviver e espero, daqui a muitos anos encontrá-la, poder relembrar e conversar sobre tudo que a vida me aprontou.

Me aproximo de sua cama e percebo que você mal me enxerga, sinto muito por isso, acho torturante o que a vida fez contigo, se eu pudesse voltar no tempo impediria todos esses acontecimentos ruins. Desde o primeiro marido que levantou a mão para você, até o primeiro patrão que ignorava seus diagnósticos e a colocava como responsável do trabalho mais pesado. 

Mãe, não passaste por nada leve, pelo contrário, carregou em suas costas coisas pesadas e sentiu muitas vezes o gosto amargo na boca. Sentada ao seu lado, na cama, eu seguro sua mão, mesmo sem muitas forças você tenta apertá-la, mal sabes que eu jamais a largaria. Aguardo uns minutos e vejo meus irmãos na porta, em pouco tempo já estamos abraçando-a e beijando sua testa. Sei que não sabe quem somos, mas sente todo o amor que temos e é isso que importa. 

O sol da manhã invade a janela e aquece nossos corpos, a vemos sorrir pela última vez e, depois de muitas lágrimas, sabemos que seus olhos não se fecharam para sonhar, mas sim para descansar. Seus dedos amolecem, sua boca se abre e eu sei que partiste. Choramos porque, mesmo sabendo que isso aconteceria, nós não estávamos prontos, mas, afinal, quem está?

A manhã do dia seguinte é fria, sem cor, estamos todos reunidos com lenços encharcados e olhos avermelhados. Coroas de flores estão à sua volta e você veste uma roupa tão bonita, aquele colar que gostava tanto agora enfeita seu pescoço. Cada filho larga uma flor ao seu lado, quando chega minha vez aproveito para acariciar pela última vez seus finos fios, desejando ainda encontrá-la. 

Tudo que é belo é efêmero, e apesar de detestar isso, eu entendo que é por essa razão que as flores morrem. Qual a graça daquilo que sempre estará lá, à sua espera? Qual o sentido de viver milhões de anos? Caminho por sua casa observando cada móvel, cada marca na parede e a sinto viva, pois tudo que há aqui faz parte de você. 

No almoço nada tem gosto, no banho a água quente parecer ser fria, sei que isso permanecerá por algum tempo até nos acostumarmos. Nada lá fora para, os carros ainda atravessam o sinal vermelho, as crianças brincam e correm nas calçadas, os cães latem para os gatos e a vida continua. Os ciclos se repetem e sei que, em algum outro lugar, outras famílias passam pela mesma situação. Antes de fechar a porta, dou uma última olhada e juro por tudo que consigo vê-la dançar na sala.

image1 (13)

Bruna Cunha Brasil

Vencedora do I Concurso Literário do PET-Letras, Campus Bagé.

logo-PET-letras-com-nome-do-campus-1 (2)

“Esta é a coluna do PET-Letras, Programa de Educação Tutorial do curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, do campus Bagé. O programa, financiado pelo FNDE/MEC, visa fornecer aos seus bolsistas uma formação ampla que contemple não apenas uma formação acadêmica qualificada como também uma formação cidadã no sentido de formar sujeitos responsáveis por seu papel social na transformação da realidade nacional. Com essa filosofia é que o PET desenvolve projetos e ações nos eixos de pesquisa, ensino e extensão. Nessa coluna, você lerá textos produzidos pelos petianos que registram suas reflexões acerca de temas gerados e debatidos a partir das ações desenvolvidas pelo grupo. Esperamos que apreciem nossa coluna. Boa leitura”.

Deixe seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Junipampa