Pensar a poesia: o além-do-poema em Marília Garcia/ Coluna Mariane Rocha

Por Mariane Rocha

 

poderia começar de muitas formas

e esse começo poderia ser um movimento ainda sem direção

que vai se definindo

durante o trajeto

poderia começar situando o tempo e o espaço

contexto     hoje é quarta-feira dia 27 de novembro

e estamos no 32 andar do centro universitário maria antonia

também faria uma pergunta

nesse caso       com quem estou falando aqui hoje?

poderia começar contando que me mudei para são paulo

há exatos 3 meses

e que esse convite do mauricio

foi como um gesto de

delicadeza e acolhida

pensando bem       poderia resumir

minha curta experiência nesta cidade

com a palavra         delicadeza

poderia começar de muitas formas

mas escolhi começar com uma pergunta

(Blind light – Um teste de resistores)

 

Olá, leitores/as,

Soa irônico o fato de que, apesar de eu estudar e escrever páginas e páginas sobre poesia, eu considere difícil falar sobre poesia e, mais especificamente, sobre determinadas poetas. É o caso da Marília Garcia, uma das autoras que eu estudo na minha tese de doutorado. Acontece que, justamente por eu falar dela academicamente, em alguns momentos, se torna complexo voltar para meu lugar inicial, de onde parto, o lugar de leitora. Mas foi a partir dele que eu entrei em contato com essa poesia tão singular, quando eu ainda não conhecia nada sobre essa poética (aliás, eu acho muito interessante esse exercício, adentrar em um livro não sabendo nada sobre ele!), mas o título do livro Câmera lenta chamou a atenção dos meus olhos já tão interessados nos diálogos entre literatura, cinema e fotografia.

Foto: Mariane Rocha

Foto: Mariane Rocha

Dentre as várias possibilidades de ser poesia, a lírica da Marília me encanta por isso que eu chamo de movimento. Os versos da poeta nos levam para um além-do-poema. Para o depois do poema. Para o entre-lugar do poema. Ler a poesia da Marília, assim, é traçar caminhos, pensar estratégias, refazer os percursos que foram feitos pelo eu lírico – que tantas vezes se confunde com um eu biográfico e exige que as distinções, em outros períodos tão claras, sejam repensadas. Poesia-pensamento. Poesia-estratégia. Repensar a poesia. Testar a poesia, nas palavras da própria poeta.

Marília estreou na poesia com o livro 20 poemas para o seu walkman, publicado pela editora 7 Letras, em 2007. Já no primeiro livro, a poeta chamava atenção pela sua linguagem elaborada e pelas aproximações intertextuais com outras vozes líricas. Depois dele, publicou os livros Engano Geográfico, Paris não tem centro, Um teste de resistores, também pelas 7 letras. Em 2017, lançou pela Companhia das Letras aquele que primeiro me capturou, Câmera lenta, livro responsável por trazer para a poeta o Oceanos, um dos principais prêmios de literatura de língua portuguesa. Seu último livro, parque das ruínas, é de 2018 e apresenta o olhar da poeta para toda sua obra, já que nele poemas que já apareciam em livros anteriores são reelaborados e expandidos e há uma constante menção aos livros e processos prévios – aliás, esse movimento contínuo de retomada da sua própria poesia é uma das características que considero centrais na lírica da Marília.

[TESTAR OS RESISTORES]

em 2014 publiquei um livro que era um teste

e que conversava com o livro de hocquard

tentei incorporar algumas ferramentas do ensaio

para dentro do poema

será que assim daria para ver

a carga teórica de um poema?

depois de publicado o livro me perguntaram:

por que você insiste em chamar de poema?

será que o poema continua sendo poema?

será que o poema deixa de ser poema

por que se confunde com outro gênero?

será que este teste poderia ser um ensaio?

quais os limites de cada um? quais as medidas?

ferramentas? restrições?

o teste inclui fazer perguntas

o teste inclui ter parâmetros

(O poema no tubo de ensaio – parque das ruínas)

Isto que estou nomeando de além-do-poema é a evidenciação do processo no resultado final: os poemas trazem marcas da escrita e da reescrita, falam desse processo, se apresentam ao/à leitor/a numa metalinguagem que vai além da reflexão acerca da inspiração e chega até as camadas mais profundas daquilo que efetivamente compõe o trabalho lírico da poeta. Assim, a partir dos poemas longos e fragmentados de Marília, ficamos sabendo como o poema foi construído, qual a sua repercussão entre os/as leitores/as e que estradas o poema percorreu antes que chegasse até nós em formato de livro. 

Outra faceta desse entre-lugar do poema são os constantes diálogos estabelecidos com outros/as poetas e autores/as, artistas visuais e cineastas. O poema nos leva para uma tradição literária-cultural diversificada, a partir de uma rede de construções complexas que vão nos acompanhando ao longo dos livros de Garcia. Assim, a lírica da Marília é um lugar de encontro para elaborarmos nossas próprias concepções de poesia – um convite para a busca das entranhas do poema, que se repete ao longo dos livros.

17.

a poeta polonesa wisława szymborska diz que sente dificuldade

de continuar um discurso depois de já ter começado

por causa do assunto que está tratando    a poesia

por que é difícil falar de poesia?

quando escrevo um poema

procuro uma espécie de abertura de repetição de diálogo

para pensar o processo de escrita em termos práticos

enumero as ferramentas que tenho

à minha frente

enunciados filmes narrativas google

poemas recortados copiados à mão

traduções jornais um romance lembranças diversas

alguma chateação frases

que serão transportadas

um fone de ouvido tocando o que eu quiser ouvir e

alguma perplexidade      diante de algo que fiz de errado

que disse   que ouvi         ou de uma cena que vivi

(Blind light – Um teste de resistores)

Entre as tantas possibilidades de ser poesia que estão aqui, existindo na contemporaneidade, as formas poéticas da Marília se destacam por nos proporem perguntas, mais do que nos darem respostas. Ler a poeta carioca, no ritmo fluido que a lírica nos impõe (ou nos permite), é a possibilidade de experimentar os deslocamentos e os furos na linguagem que são matéria para tantos de seus escritos. É a possibilidade de experienciar o além-do-poema sem sairmos, em primeiro lugar, dos versos nos quais estamos inseridos. A leitura da Marília se faz também na releitura e a cada reencontro nos deparamos com um poema novo, que atualizado pelo/a leitor/a, nunca se encerra em si mesmo. É que Garcia é generosa e deixa espaço para que nós nos tornemos, assim como ela, um pouco ensaístas e filosóficos sobre os lugares que a poesia (pode) ocupa(r).  Espero que vocês aceitem o convite da autora e se tornem, também, um pouco poetas com ela, a cada página virada.

*

Para ler o poema “Blind light” na íntegra: https://drive.google.com/file/d/1G5U_vhQDXrfbzImScEux6PEeu_0BRjh7/view?usp=sharing 

Para saber mais sobre a poeta: https://www.youtube.com/watch?v=hbPMiKAFo-M&ab_channel=Pr%C3%AAmioOceanos

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Mariane Rocha é leitora desde que se conhece por gente. Graduada e mestra em Letras, atualmente é professora de literatura e língua portuguesa no IFSul, em Bagé. Estuda poesia contemporânea e suas articulações com fotografia e cinema no doutorado em Letras da UFPel.

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