Para onde vão as crônicas não escritas?

Autor: Michel Domenech

    Como bom desmemoriado, minhas crônicas não escritas têm destino certo: escorrem pelo ralo da memória e só me resta o conformismo, a eterna lamentação pelas histórias não contadas ou este caminho do meio, uma crônica sobre as crônicas que não foram.

Mas por que não escrevê-las mais tarde, a que se deve a desistência? À, já citada, desmemória. Se não escrevo o texto logo após a ocorrência do evento que o inspirou, os detalhes se borram, assemelhando-se àquelas manhãs de inverno, bem cedinho, onde a serração toma conta e a gente mal enxerga alguns centímetros à frente. O essencial da história se mantém, a gente consegue caminhar sem se perder, mas se olhar para os lados, verá que a névoa recobriu todos os enfeites da paisagem. E o que é uma crônica sem tais enfeites ao longo do percurso? É uma crônica que não mais merece ser escrita.

Embora possa não parecer, eu até nutro certo carinho pelo meu esquecimento. Não fosse ele, eu talvez não escrevesse. Registrar vivências por escrito é minha forma de insubordinação ao sumiço das lembranças. Uma espécie de sentença ao cleptomaníaco que habita meu cérebro.

No entanto, há alguns episódios que eu lamento tanto não ter escrito. Ó céus, que tamanha estupidez foi confiar na memória e deixá-los para depois! O que sobra agora são retalhos de lembranças, um álbum de figurinhas incompleto que não dá direito a prêmio nenhum.

Um dos causos que gostaria de ter escrito se passou em um táxi, em direção à rodoviária de Porto Alegre. Nunca vi cidade com taxistas mais exóticos, mas o sujeito que me conduziu tornava todos seus pares indivíduos absolutamente comuns. Eu o apelidei de taxista-filósofo porque, além de utilizar um vocabulário deveras rebuscado e possuir uma reverência descomunal à gramática em seu modo de falar, ele fez uma legítima palestra enquanto nos deslocávamos (faltaram só os slides). Me senti utilizando um serviço dois em um: táxi e TED Talk. Inclusive, o motorista deveria cobrar a mais por isso! Volta e meia ele dizia “a minha tese é a seguinte…”. O problema era a antiguidade de sua tese. Por vezes eu não tinha certeza se estava dentro de um táxi numa movimentada metrópole ou numa charrete em pleno século XIX, enquanto meu condutor dividia comigo opiniões comuns à época. Em linhas gerais, sua tese afirmava que o Brasil é uma nação tão atrasada, berço de um povo tão mesquinho, porque fomos colonizados pela escória portuguesa. Está tudo no sangue contaminado que corre nas nossas veias. Um tanto simplista sua reflexão, bem diferente do vocabulário utilizado para expressá-la.

Outra história que eu gostaria de ter escrito aconteceu em uma parada de ônibus – uma das melhores fontes de matéria-prima para cronistas; sabe-se lá quantas crônicas não foram geradas pelo uso de fones de ouvido em tais espaços (cronistas, não recorram a tal contraceptivo!). Enquanto aguardava, uma senhora muito conversadeira puxou papo comigo. Como algumas pessoas de fala fácil, no instante seguinte já estava me contando detalhes pessoais de sua vida. Contou que se recuperou de uma grave doença e agora estava muito satisfeita e bem de saúde. Quando se sentiu mal de modo realmente assustador, contou o ocorrido a algumas amigas e elas a tranquilizaram. “Não há de ser nada”, disseram, “não se preocupe, tudo ficará bem”. A velha mulher não deu ouvidos às recomendações e se dirigiu ao médico o mais depressa possível. Foi diagnosticada com câncer e na semana seguinte já estava na sala de cirurgia. O médico lhe disse que, se tivesse demorado um pouquinho mais para procurá-lo, a doença seria fatal. Ela riu e me disse: “Já pensou se eu tivesse escutado o conselho das minhas amigas?”. Ao que concluiu triunfante: “O otimismo é uma burrice!”.

Ah, se eu pudesse voltar no tempo, tal qual faz o taxista-filósofo cada vez que verbaliza alguma de suas teses, escreveria as histórias acima com prontidão e com a riqueza de detalhes que merecem. Infelizmente teimei em confiar na memória. O otimismo é mesmo uma burrice!

Este é um fruto da Oficina de Crônica, ofertada pelo LAB- Laboratório de Leitura e Produção Textual em parceria com a oficineira Viviane Geribone.

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