O segredo de Anastácio Rodrigues

Autor: Estudante de Jornalismo do Unipampa- Campus de São Borja, Valnir Peralta Fernandes

Na hora do mate, quando para pra pensar, Anastácio Rodrigues se lembra daquele dia. Isto se deu há muito tempo. Mas, Anastácio queria mesmo era nunca mais se lembrar do ocorrido, daquele dia e do peso que ele carrega na consciência. Nem Almerinda, sua mulher, nem seu filho, Mário José, nem sua filha, Maria Anastácia, sabem o que aconteceu. O entrevero se deu em outros pagos, mui longe daqui. Ainda no tempo em que Anastácio era solteiro.

O causo se sucedeu há mais de vinte e cinco anos. Mas quando Anastácio se lembra, parece que foi ontem. Foi pros lado da fronteira com a Argentina, lá prás bandas de São Borja, nas carreiras do Manoel das Botas. Naquele dia, a gauchada tava toda reunida prá carreirada. Churrasco e bebida corriam soltos. A indiada jogava o jogo do osso. Era carreira de cancha reta, daquelas das buenas!

Anastácio Rodrigues vinha cuidando seu pingo como nunca antes para a disputa. Dava-lhe sorgo, milho e, quando a noite caia, botava na baia. Também dava banho de açude “pra adelgaçar”. O cavalo era de pelo Zaino, chegava a tá lustroso, mui lindo. Ele não podia perder esta carreira. A parada desta vez era contra o Baio do Amâncio Centena.

O cavalo Baio de Centena também tava mui bem cuidado. O Baio era conhecido por ser mui ligeiro e já ter ganho grandes pencas e carreiras. Todos os carreiristas tinham medo do Baio do Centena! Além disso, Amâncio tinha fama de brigador, daqueles que não levava desaforo pra casa. Já tinha cortado uns e matado outro. Desta vez, Amâncio levou seu filho, um guri de uns quatro ou cinco anos de idade.

Quando o bandeirista baixou a bandeira e a gauchada gritou “Se vieram” foi aquela polvareda. Mas dava para ver que a pegada era parelha. Casco a casco. Rédea a rédea. Cabeça a cabeça. Focinho a focinho. Nos últimos 50 metros o Zaino de Anastácio despontou um palmo de nariz e foi assim até o fim. Quando o julgador anunciou a vitória do Zaino, Amâncio Centena não aceitou a derrota e gritou que a carreira tinha sido roubada. Anastácio Rodrigues, que também não era homem de levar desaforo pra casa, sentiu seu sangue ferver, como água quente prá pelar porco. De imediato, sacou seu “Três coqueiros” e avançou como touro brabo, bufando, prá cima de Amâncio Centena. Este quando viu a coisa feia, sacou seu 38 e atirou contra Anastácio.

Tu que lê este causo não queira nem imaginar o que se passou naquela tarde! Foi coisa feia. Nem é bom lembrar meu amigo!

Anastácio, que era índio ligeiro que nem gato do mato, se desviou da bala como quem se desvia dum boi brazino brabo e, sem pensar, (porque se tivesse pensado o causo não teria se dado do jeito que se deu. Todos sabiam que Anastácio era homem bom, não fazia mal prá ninguém, daqueles que não judiava de bicho, nem do rodeio, nem dos cavalos), no calor do momento, se quadrou prá um lado, deixou a bala passar, e soltou seu 3 coqueiros no pescoço do Centena. De pronto, brotou do pescoço do Amâncio uma cinta de sangue e um esguicho que era a coisa mais feia de se ver. Só deu tempo do índio virar os olhos pro lado do filho como quem diz: “Até logo meu filho”! Tombou no chão como boi quando cai pialado. Morto. O chinaredo começou o gritaredo. A gauchada se alvoroçou. A tarde ensolarada como em sintonia com a desgraça daquele dia, deu lugar a nuvens negras, desabando o aguaceiro. Anastácio Rodrigues, sem entender o que tinha acontecido, montou seu Zaino, passou na estância onde trabalhava, pegou suas coisas e se bandeou lá pros lados de Bagé. Onde vive até hoje.

– Anastácio! Anastácio!

Chama Almerinda avisando que o almoço já está servido. Anastácio perdido nesses pensamentos disfarça para não mostrar à mulher que algo lhe preocupa. Afinal, ninguém sabe de seu passado. Anastácio esconde um segredo. Imagina o que vai pensar sua mulher e seus filhos se souberem que ele matou um homem?

Mas o que explica esta viagem no tempo de Anastácio e a volta destas memórias é que no próximo domingo, tem outras carreiras, lá no Rincão dos Gomes. Vai ser na cancha do Nini Machado. Anastácio ainda vai às carreiras, mas desde aquele tempo, nunca mais cuidou cavalo para competir.

Domingo de manhãzita, Anastácio Rodrigues e seu filho Mário José, se foram em direção ao Rincão dos Gomes. Lá, no bolicho do Pedro Porretada, enquanto tomavam um trago, Pedro apresentou a eles um rapaz chamado Juarez. Juarez tinha chegado há pouco naqueles pagos. Tava trabalhando na Estância Santa Margarida, dos Móglias. Anastácio e Mário José ficaram amigos de Juarez da Silva. Depois de muito prozearem, beberem e falarem de carreiradas, de mulheres, contarem suas ganhas e perdidas, Juarez, de repente, fica sério e no impulso do trago, faz uma confissão aos novos amigos.

Conta a eles que procura fazer justiça e que um dia inda vai encontrar o homem que matou seu pai. Mário José se interessa pela história enquanto Anastácio ouve quieto e pensativo, torcendo para que a história não seja a que ele está pensando. Em silêncio, ele pensa:

– Será que o passado voltou para me assombrar?

Mário José pergunta a Juarez da Silva:

– Como foi que isso aconteceu? Que tragédia!

Juarez continua:

– Eu era mui pequeno, guri de uns 4 ou 5 anos de idade, meu pai me levou a uma carreira lá perto da Argentina. Meu pai tinha um cavalo Baio e correu contra um cavalo Zaino. Só sei isso, nunca descobri o nome do dono do Zaino.

Quando ele disse isso, o sangue de Anastácio pareceu congelar. Ele só conseguiu formular o pensamento:

– Não pode ser! Não é possível!

Juarez completa:

– Mas um dia eu mato este desgraçado! Não vou descansar enquanto não colocar uma bala no peito do homem que tirou a vida do meu pai. Nem que seja a última coisa que eu faça na vida.

Juarez continua:

– Me contaram que a carreira deu quase empate, mas que meu pai achou que tinha sido roubada para o cavalo Zaino. Quando meu pai falou que era roubo, o dono do Zaino, saltou pra cima dele com um facão e lhe deu um talho mortal no pescoço.

Anastácio ouvia tudo em silêncio, sem acreditar no que seus ouvidos ouviam.

Mário José, interessado na história, continuava a fazer perguntas:

– Qual era o nome do teu pai?

Ao que ele respondeu:

– O nome do meu pai era Amâncio, Amâncio Centena. Eu me chamo Juarez, Juarez da Silva Centena.

– Meu pai foi morto covardemente, sem chance de defesa.

Esta era a versão da história que tinham contado para ele.

Ao ouvir isso, Anastácio, já carregado do trago que estavam tomando e da injustiça que estava ouvindo, não agüentou e gritou:

– Mas o teu pai ia me matar com um tiro!!! Só que ele errou e eu não.

Neste instante no Rincão dos Gomes se ouviu um tiro. Tiro de revólver 38.

O Sol sumiu. O tempo se armou. A tarde ensolarada com em sintonia com a desgraça daquele outro, e deste, dia, deu lugar a nuvens negras, desabando o aguaceiro. De novo!

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